sábado, 3 de abril de 2010

A minha mãe?

A pergunta, temida e com um alto grau de perigosidade, surgiu do nada da boca da criança de 4 anos:
- A minha mãe?
Estremeci: ora, muito bem, aqui vamos nós…
- Está na escolinha a estudar inglês. Já está mesmo, mesmo a chegar – proactividade em acção.
- A minha mãe?
Revirei os olhos. Já sabia. O som saíra estridente.
- Gonçalo, querido, sabes que ela vem já…
- Quero a minha mãe! – gritou.
Toquei-lhe.
- Olha, não faças barulho para ouvirmos a campainha, está bem? Oh, o elevador em acção. Será ela?
Ambos sabíamos que não.
A ladainha continuou.
- Quero a minha mãe! Quero a minha mãe! Quero a minha mãe!
- Eu sei e falta pouquinho tempo para ela estar aqui connosco. Anda cá, à madrinha.
- Nãããoooo! Não gosto de ti.
- Gostas, sim, senhor. Vem. Eu dou-te beijinhos e conto-te uma historinha.
- Não quero! Não gosto de ti.
Começou a andar à roda da mesa da sala, braços caídos, expressão carrancuda e choro sem lágrimas.
- Não gosto de ti! Não gosto de ti! Ããããããããããããã…
De repente, mudou o azimute e começou a percorrer a casa, mantendo a prece. Eu atrás dele.
- Gonçalo, queres uma bolachinha?
- Não!!! Ããããããããããããã…
- Água ou sumo?
- Não!!! Ããããããããããããã…
Com a cabeça a mil.
- E chichi? Queres fazer?
- Não!!! Ããããããããããããã… Não gosto de ti e quero a minha mãe!
Lágrimas grossas começaram a cair e, ajoelhando-me, pus firmeza na voz.
- Gonçalo, estou a ser má para ti? Não estou, pois não? Podes fazer o quiseres. Não vale a pena chorar, não achas?
- Ããããããããããããã… Quero a minha mãe.
- Muito bem. Tens a casa por tua conta. Se precisares de alguma coisa, estou aqui mas não continuo a falar contigo. Vou para a sala.
As posições inverteram-se: veio atrás de mim.
Sentei-me no sofá e os meus níveis de ansiedade atingiram gravemente o nível encarnado. O telefone tocou e quase comecei a gritar pela MINHA MÃE. Difícil perceber quem era. Não ouvia nada com a barulheira que vinha da porta. Conversa curta. A tia Ilda percebeu que eu estava em campo de batalha.
De repente, num choro imenso, e no meio de fungadelas:
- Quero fazer cocó!
Estúpida, a única coisa de que me esquecera! Levantei-me de um salto e, dando-lhe a mão, disse-lhe:
- Ai, que coisa tão boínha. Vá, vamos depressa.
Corremos para a casa de banho. Vertiginosamente, tirei-lhe a roupa, sentei-o na sanita e deparei-me com o inimaginável: quilos de porcaria nas cuecas e nas calças. Esqueci-me do auto-controlo.
-Valha-me Deus! Nem acredito nisto!
A aflição atingiu-o em cheio e o muro começou a cair.
- Ajudas-me? Tiras-me isto? Lavas-me?
Esqueci o cenário, agarrei-lhe na carinha e dei-lhe mil beijos.
- Claro que sim, Gonças. Não há problema nenhum. A madrinha vai limpar-te mas tens que me ajudar. Deixas de chorar, querido?
Continuei a falar com ele já em tom de galhofa enquanto, afanosamente, andava a correr de casa de banho para casa de banho, ligava o esquentador e limpava a sujidade. Sem me esquecer de ir brincando com ele.
- Vou ficar limpinho, madinha?
- Então, não? Claro que sim. Achas que te deixava ficar sujo? Vamos tomar uma graaaande banhoca.
A campainha tocou.
- Olha, a mãe chegou.
Nem quis saber. Deixou-me pô-lo na banheira enquanto eu contava as nossas desventuras ao ser mais desejado até há uns minutos atrás.
Ajoelhei-me, agarrei numa manápula, enchi-a de gel, não sem antes ligar o chuveiro.
- Não faça isso – disse-me a mãe. - Ele tem medo e vai começar a fugir e a chorar.
- Por favor, deixe-o comigo e não diga nada – pedi-lhe, tranquila.
Ele pôs-me as mãozinhas nos ombros, falava sem parar e ria.
A mãe, estupefacta, sussurrava.
- Ele nunca me deixa fazer-lhe isto…
Lavei-o, limpei-o e arranjei roupa de adulto – a única que havia em casa. Tudo no meio de gargalhadas.
Quando saíram, fechei a porta e empurrei-a com as mãos abertas e a cabeça baixa. Suspirei.
Amava-o profundamente mas era tão reconfortante voltar para o meu espaço e para o meu silêncio.
Quando comecei a tomar conta do Gonçalo três vezes por semana, a mãe encheu-me de recomendações. Recordo uma:
- Não se preocupe porque ele só faz cocó antes de se deitar. Por isso, nem vale a pena trazer bacio.
Em todos os outros dias, cerca de cinco a dez minutos depois de chegar a minha casa, dizia-me:
- Madinha, quero fazer cocó!
Claro que o bacio teve que entrar rapidamente porta dentro.
A partir de então, fiquei com a certeza de que tinha, nos outros, um efeito laxante.

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