terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Ainda a propósito do Broncas...

No Verão fui almoçar a casa da minha amiga Paula. Vive num segundo andar de um prédio que, visto do exterior, parece uma vivenda. Não tem elevador.

Ouvimo-la:

- Vai, Broncas! É o Ponto de Interrogação e a Vírgula. Vai ter com elas, vai!

Correu escada abaixo. Estávamos no primeiro lanço a rir com a sofreguidão dele, que mais parecia um cachorrinho desvairado do que um cão apessoado de 11 anos.

Já não me via há uns tempos. Quando ia a descer, olhou-me e estacou. Devagarinho começou a andar para trás e desapareceu na esquina do corrimão.

Incentivámo-lo.

Primeiro, a orelha e o olho direitos. Pouco a pouco o focinho foi surgindo, espreitando e estudando a situação. Aparecia. Desaparecia. As gargalhadas e ”Broncas, vem cá…” estalavam o silêncio.

Desceu os primeiros degraus mas, numa decisão impetuosa, virou o rabo e zarpou até casa. Voltou e o cerimonial repetiu-se. De repente desceu e dirigiu-se ao Ponto de Interrogação. Se ao menos eu fosse uma bola colorida, grande, pequena ou assim-assim, cumprimentar-me-ia e atirar-se-ia para cima de mim com toda a alegria do universo.

Enchi-o de festas e de palavras tontas e a coisa acalmou.

A casa da Paula é um amor mas pequenina. Para qualquer lado que nos virássemos estampávamo-nos com o príncipe, que queria atenção e brincadeira.

Hora do almoço. Um desastre maravilhoso – as duas manas, “mães” cuidadosas, diziam-lhe determinadamente: “Não, Broncas, não te dou de comer. Isto faz-te mal.” Pelo sim, pelo não, vinha ter comigo. Das duas espetadas divinais, fui retirando, o mais imperceptivelmente que me era possível, pedaços de carne de vaca e chouriço. Deixava descair o braço e zás… uma boca rodeada de pêlo ruivo e barbichinha branca afiambrava o petisco. E, pronto, a Vírgula e o seu príncipe canídeo eram logo alvo de ralhetes. Eu punha um sorriso estúpido e pestanejava candidamente.

Um parêntesis. O Broncas era macho-macho, ou seja, nunca ficou a ladrar fininho, ou seja, a família recusou-se a tirar-lhe os tintins. Assediava a Lady, esterilizada, que o provocava com muita sabedoria, como boa fêmea que é, mas que, depressa, numa postura cheia de pedantismo, o mandava bugiar.

Muito activo sexualmente – demasiado, diria eu –, não era propriamente selectivo. Quase tudo lhe servia desde que tivesse pernas – Lady, bonecos e pessoas. Se estava a ser observado, os fervores cediam com as palavras um pouco mais duras dos donos.

De regresso ao almoço.

Na hora de arrumar a cozinha, o Broncas foi para o quarto encontrar-se com a sua ‘sobremesa’ preferida: um boneco de peluche (sempre o mesmo), com ar decadente de tanto ter sido lavado, esfregado e desinfectado. Acto rápido que nos pôs a rir, com excepção da Paula que começou a dizer mal da vida dela. Pela milionésima vez elevada ao cubo, lá tinha que ir limpar.

Escusado será dizer que não teve descendência.

No passado dia 1 de Janeiro fui jantar a casa da minha amiga Paula.

Serão combinado semanas antes do declínio do Broncas. Na quarta-feira anterior, perto das 20 horas, ele adormecera para sempre.

Parti do princípio de que o encontro ficaria sem efeito. Até disse ao Ponto…: “Vou ter que deixar passar uns tempos antes de ir a casa dos teus pais ou da tua irmã. Não me sinto com coragem para enfrentar o vazio do meu príncipe.” Insurgiu-se. Tinha trocado mails com a Paula que queria mesmo fazer o jantar connosco, numa homenagem ao Broncas, por quem brindaríamos. “Ok – respondi-lhe, emocionadamente acalentada. – Minha querida mana do meio… Não te preocupes, eu dou a ‘volta’.”

Chegámos. Os gestos e as palavras tentavam esconder a nossa ansiedade mas conhecemo-nos bem.

Antes de abrirmos a porta do prédio, olhámos uma para a outra, inspirámos e dissemos. “Bom, cá vamos nós…”.

O silêncio na escada caiu-nos em cima como nevoeiro cerrado e húmido que nos fez doer os ossos e apertar a alma. Dei-lhe a mão e, assim, subimos até ao segundo andar.

Aprendi cedo que mais vale estar calada do que dizer parvoíces mas as emoções conspiram contra nós:

- Santo Deus, nem se ouve a voz da Paula…

Fingimo-nos à vontade apenas nos primeiros momentos. Logo de seguida sentimo-nos mesmo.

A casa da Paula é um amor mas é tão grande…

Desta vez, a fadinha do lar foi o Ponto… Antes e depois do jantar, eu e a Paula continuámos sentadas, a fumar, a beber e a falar.

Conversámos sobre muitos temas. O primeiro de quatro brindes iguais foi para a ausência que sentíamos presente. Levantámos os copos e dissemos a uma só voz: “Ao Broncas…”.

Árido? Não. A energia luminosa que, decerto, esteve connosco, sabe o valor daquele ritual que durou até perto das quatro da manhã.

Tenho muitas recordações dele mas esta tem sido recorrente.

Quis uma lembrança física. Pedi ao Ponto… se me dava uma bolinha, esse objecto que o deixava atabalhoado como se fosse a melhor comida do mundo ou a cadela mais bonita da rua e que tanto o afectou. Há dois anos, numa das suas saídas, e sem que se desse por isso, engoliu uma bola. Guardou-a no estômago durante seis meses até que começou a adoecer, acabando por ser operado.

O Ponto… deu-me três: duas pequeninas e uma assim-assim. A assim-assim é de borracha mole e está toda marcada pelos dentes dele.

Pu-las na estante do meu quarto, em locais criteriosamente escolhidos, num relicário de memórias e de amores.