Um destes dias, numa das minhas muitas deslocações
ao Hospital de Egas Moniz como utente, e considerando a cada vez maior
dificuldade em estacionar o carro dentro ou fora daquelas instalações, após 45
minutos de procura, lá estacionei num local pouco aconselhável mas que serve de
parqueamento a todos os que, como eu, não têm outra alternativa.
Naquele espaço, e como impera cada vez mais, labuta
um senhor já de idade e com algumas dificuldades, mas que se apressa em ajudar
a encontrar e/ou arrumar os veículos. Uma “profissão liberal” não legalizada a
que chamamos comummente de “arrumador de carros”. Curioso é que em alguns
locais já existe efectivamente este tipo de ofício reconhecido mas
aparentemente apenas e só num contexto elitista.
Adiante… Estacionei o carro e com muita vergonha
saí e disse-lhe o que costumo em circunstâncias semelhantes: “peço imensa desculpa
mas não tenho dinheiro nenhum.” – E não tinha.
Ele ficou a olhar para mim e respondeu com uma
ironia condescendente e educada: - E que culpa tenho eu disso? – Acrescentando logo
de seguida: - Desde que me deseje saúde e paz. O resto vem por acréscimo. Não
se preocupe com isso.
Retorqui tentando fazer jus ao respeito e educação
que os meus queridos progenitores me deram: - Sim. Eu sei. E não é isso que
está em causa. Gostava de contribuir com pouco que fosse. Mas fazemos assim: eu
vou buscar o meu pai e depois dou-lhe qualquer coisa se ainda aqui estiver. –
soou mal mas era, na altura, a única coisa que conseguia dizer.
Voltou a dizer-me para não me preocupar. Nos dez
minutos que passaram contou-me que trabalhou, em tempos, no Instituto de
Medicina Tropical (no parqueamento). Um dia apanhou uma senhora que, depois de
estacionar, foi ter com ele, deu-lhe vinte cêntimos e disse-lhe, com os olhos
marejados de lágrimas: - o senhor desculpe-me mas este é o único dinheiro que
tenho aqui e em casa.
A reacção, para um ser humano que se preze, foi a
de retribuir literalmente na mesma moeda. Com as lágrimas a percorrer-lhe a
face, ele levou as mãos aos bolsos das calças, tirou dois euros e meio e
deu-lhos: - tome. Aceite para comer qualquer coisa no hospital. - A senhora
hesitou mas, a muito custo e com a determinação patente naquele gesto, aceitou.
Ponto um: o que é o filantropismo? Segundo o
dicionário é o sistema dos filantropos.
E o que é um filantropo? De acordo com a mesma fonte que ou aquele que trata de melhorar a situação dos homens. O
estatuto ou título de filantropo é, hoje em dia, atribuído a uma classe de,
salvo raras excepções, gente “nobre” que dá o que pode porque efectivamente tem
para dar. Ou seja, hoje em dia só os ricos são intitulados de filantropos. Só
os ricos contribuem para “melhorar a situação dos homens”.
Ponto dois: o que é a caridade? Aqui o dicionário
é mais pródigo em atribuição de conceitos:
1. Boa disposição do ânimo para
com todas as criaturas;
2. Qualquer manifestação dessa
disposição;
3. Pena que se sente pelos
sofrimentos alheios;
4. Esmola;
5. [Irónico] Dano, ofensa.
Estas imagens são tradicional e frequentemente
atribuídas aos que pouco ou nada têm e dão tudo. No entanto nunca pensamos
nisto. Eu pelo menos não pensava até que o meu Tico e Teco tiveram um tête-à-tête. Pensei: - caraças! Mas será
que até para se contribuir para a melhoria significativa do mundo os ricos é
que têm mais poder?
Por exemplo, eu quero comprar ração, brinquedos,
roupa, e outros bens de primeira necessidade para contribuir para diversas
causas humanitárias e animais. Não posso porque sou tesa que nem um carapau.
Quando dou o que não tenho estou a fazer caridade.
Pois bem. Inverto os papéis e daqui não arredo pé:
quem dá o pouco que tem de forma responsável, está cá para melhor servir o
mundo e para carimbar o seu contributo numa sociedade e vivências mais justas e
equitativas; quem dá um pouco do muito que tem é, salvo as devidas excepções, alguém
que, por um lado alimenta o imenso desequilíbrio entre as diversas classes
sociais e, por outro, contribui somente através da “pena que sente pelos
sofrimentos alheios” traduzida na sua egocêntrica esmola.
Posto isto, quem são, afinal, os filantropos e os
caridosos?
Quando saí do hospital dei um euro ao “trabalhador
de campo”, que ali está todos os dias para ajudar a arrumar e guardar os nossos
bens.