terça-feira, 6 de agosto de 2013

Homenagem à minha maneira com ponto de interrogação




Meu querido Pai,

É muito cedo para falar de ti, do que sofreste e passámos em finais de Maio, Junho e Julho.

Com 86 anos, davam-te menos quinze ou vinte anos. Orgulhavas-te dos teus genes incomuns.

Há quase três anos ultrapassaste, com convicção, uma lobotomia, a quimioterapia e os tratamentos a que te submeteste na sequência de um cancro no pulmão.

Quando te dei a notícia, da forma mais calma e terna que encontrei, tu já suspeitavas.

Disseste-me e repetiste por diversas vezes: ”não te preocupes porque hei-de vencer a doença”.

E conquistaste esta inesperada guerra que acompanhei e vivi.

Sempre me envaideci do teu aspecto tão interessante, e quando te dizia “estás giríssimo”, ironizavas: “estou giiiirooooo? Não percebo. Não sabes que a mim qualquer trapinho me fica bem?”. Ouvi esta frase centenas de ocasiões mas acabávamos sempre às gargalhadas, porque ambos conhecíamos a tua modéstia, o teu sentido de humor e a tua indiferença relativamente ao exterior, bonito, feio ou assim assim.

Fazes parte das pessoas coerentes, verticais,  demasiado honestas, que desempenhou uma carreira brilhante a pulso, assertivo, compreensivo, tolerante e generoso mas é a ti que mais amo.

Foste, para mim, o suporte, o docente de excelência, o companheiro, o “estou sempre aqui”, a luz a que deveria ter recorrido mais pelo teu bom senso, correcção, pragmatismo e saber fazer e dizer. 

Recebeste muitos embates da vida mas cumpriste a tua missão como um anjo sem asas. És um ser de fé, bem-disposto, irónico, que enfrenta os problemas quando vêm – nem antes nem depois.

Esta última característica que advinha de um autocontrolo invejável foi perdendo força nos últimos anos. Estavas demasiado cansado por teres tomado conta de tanta gente que, por bem, por mal ou por ignorância te vampirizavam. Eu incluída.

Eras um deus desconhecido – a terra prometida. Palavras escolhidas. Leitor voraz, adoravas o Steinbeck.

Já sabes a falta que fazes, a saudade que corrói e a vontade constante de poder atravessar dimensões para me esconder nos teus braços.

Caí no caos e na irracionalidade. Zanguei-me contigo, depois de morto, pelo que deixaste por fazer e que caiu em cima de nós, melhor dizendo, sobretudo em cima de mim. Esqueci-me das tuas lições. Provas de vida que nos desafiam, tendo sido tu um dos instrumentos. E renasci sem raízes porque não estás comigo. Mas renasci.

Fui a penúltima pessoa que se despediu de ti.

Há ironias estranhas. Uma infecção urinária originou algaliação e uma septicémia que te levou em poucas horas, precisamente no dia em fizeste 87 anos.

Disse-te adeus, sem te forçar a nada, porque sabia que, mesmo que voltasses para casa, te tinha perdido.

A miúda foi a última e também pôde observar esse olhar derradeiro de quem já percorre outros caminhos. 

Assistiu, na primeira pessoa, à tua primeira paragem cardíaca sem perceber o que se tinha passado mas sentindo que também ela te perdera. 

O fim para todos nós. 

Ou um interregno penoso.

Gostavas muito de a ouvir e lembro-me, como se fosse hoje, a emoção que invadiu o teu rosto quando ela cantou A Gaivota num piquenique das duas famílias una.

Para ti, Pai. Com todo o Amor.



"(...) Se ao dizeres adeus à vida
as aves todas do céu 
me dessem na despedida
o teu Olhar derradeiro
esse olhar que era só teu 
Amor que foste o primeiro(...)"