quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O amante das ruas...

Não posso contar. São memórias apenas minhas. Como não tenho capacidade para escrever, encomendei este texto – e quem o escreve não entende a minha linguagem.

Andei na rua, com todas as vantagens e desvantagens de ser sem-abrigo. Mas não sei o que é a agressividade nem a revolta – apenas o instinto de sobrevivência. A doçura é uma das minhas características. 

Não sou bonito. Há até quem me chame feio. Sou estrábico e os meus olhos não são iguais. O direito tem umas pálpebras normais; o esquerdo está definido a negro como se tivesse eyeliner

Um dia deparei com uns portões verdes de ferro abertos. Entrei e vi um pátio grande, zona de estacionamento, com alguns pequenos locais com terra. Ideal para a minha exaustão. Deram por mim, começaram a dar-me comida, água e mimo. Dormia debaixo dos carros e corria, livre, por aquela zona de pedra.

Não tinha motivos para abandonar o sítio onde tinha encontrado alguma segurança e conforto. Fiquei.

Desconhecia mas voavam e-mails com a minha fotografia na esperança de me encontrarem uma família adoptiva. Confesso que comecei a deprimir. Carência sem fim, deixei de comer. Necessitava de atenção, carinho e calor humano. 

Também não sabia, mas a minha presença, anódina, começava a incomodar. Uns queriam-me, outros não me queriam. Encontrava-me numa instituição pública e o director avisou, quem de mim gostava, que não sabia que eu estava lá mas que já havia movimentos de descontentamento e se lhe formalizassem a queixa teria que passar a ter conhecimento e pôr-me na rua.

Insistiram nos e-mails. No dia 23 de Outubro de 2011, num domingo chuvoso, foram buscar-me. A minha amiga Segurança de serviço ficou a chorar de dor e eu não sabia ao que ia.

Entrei, medroso e sujo, numa casa com tudo preparado para me receber. Chamaram-me Luna. O meu avô dizia que eu ficaria traumatizado por ter nome de mulher… 

Nas duas primeiras noites dormi debaixo de uma cama que me fazia lembrar o refúgio dos carros. Mas a cama foi substituída por um sommier largo e grande. O meu instinto fez-me subir e dormir num dos cantinhos não fosse ter que fugir rapidamente. Tinha uma mantinha linda, às cores e muito fofinha, especialmente escolhida pela minha tia S. Mas não a queria em cima de mim – não a minha tia!, que adoro, mas a manta! 

Afinal, estava habituado ao frio, ao calor e ao vento.

Poucos dias depois, durante os meus passeios nocturnos pela casa, encontrei a janela da cozinha ligeiramente aberta com os estores não completamente descidos. Esforcei-me, levantei as persianas com a cabeça e passei para o parapeito de fora. A minha mãe, atenta que nem rato experiente de esgoto, apercebeu-se e veio a correr. Eu, feliz, a percorrer aquele passeio. Ela, em pânico, encostada a um armário. Quando a vi chorar, fiquei a olhar estarrecido sem perceber patavina mas achando que o melhor era voltar depressinha para dentro. E lá fui eu. Vi-me coberto de beijos e de abraços. Excelente recompensa. 

Um episódio que se repetiu por mais três vezes. Adoptaram outra estratégia. Aparentemente não se enervavam e chamavam-me sem se aproximarem para não me assustar. Finais felizes, diziam.

Andava o dia todo atrás da minha avó. Pobre e querida senhora. Sentia-se só e falava comigo constantemente de tudo e nada. Adorava ouvi-la tagarelar e cantarolar. Inseparáveis.

Ficava aborrecido, claro está, quando a minha mãe saía todas as manhãs. Dizia-me que ia ganhar dinheirinhos para a minha papinha… He-e… Dois dias por semana ficava em casa. Que raio de sentido é que isto faz? Quando voltava, no final da tarde, era o primeiro a chegar à porta. Chamava por ela sem compreender por que não a via. Mas homem que é homem não dá abébias. Queria beijar-me e eu voltava-lhe o rabo. “Não, não, minha querida – pensava –, agora hás-de penar! Ora toma lá, vai buscar…”

A minha família considerava que eu tinha um olhar expressivo e lindo. Percebiam se não estava para amar, se tinha sono ou se queria alguma coisa. Acima de tudo, os meus olhos são suplicantes como os de uma criança bem-comportada. Com a minha voz de bebé, chamava a avó para me fazer companhia a comer.

A mãe deu-me brinquedos, um iglo e um ginásio. Coitada. Não percebia que eu não sabia brincar, que não me sentia bem fechado e o que me agradava mesmo era afiar as unhas naquela estrutura encarnada.

O meu local preferido era o bar localizado numa varanda fechada, rodeada de janelas. Saltava e estava horas lá em cima, a dormir ou a ver o movimento da rua. Sou muito branquinho, com o nariz rosinha e o médico não queria que eu apanhasse sol, mas, convenhamos, também não me agradava nada. Um incómodo para os meus olhos azuis tão claros…

Pedia frequentemente à avó e à mãe para me agarrarem e abrirem uma janela. Sabia que era a única maneira de conseguir cheirar o vento e de ver o mundo.

Quase um ano depois, entrou um gatinho cego lá em casa, o Stevie. A minha presença, meiga e ansiosa de o acarinhar, assustava-o. Era perito em bufar quando me sentia. Voltava-me, ia-me embora, dando-lhe espaço, tentando segunda, terceira e tantas vezes mais que ele me aceitasse. 

Um dia, aproximei-me, e, devagarinho, estendi-lhe a mão para lhe fazer uma festa. Não reagiu mas não quis abusar. Foi o último gesto que o avô me viu fazer.

Depois do almoço deram pela minha falta. Procuraram-me pela casa toda até que perceberam que uma das janelas do bar estava um pouco aberta. Pensaram no aparentemente impossível.

A Valesca, grávida de poucas semanas, saiu disparada de casa, e foi às traseiras. Estacou ao ver-me. O encarregado da piscina estava ao pé de mim.

- O gato é seu? – perguntou.

- Sim… Não… É dos meus patrões…

O homem deu-me um pontapé.

- Está morto!

Sem parapeito e com um espaço tão pequeno, o meu esforço foi tão intenso que caí no vazio.

Vim da rua e para a rua regressei. Definitivamente.

Morri como vivi. Sem dar trabalho, silenciosamente, anonimamente, humildemente. Até a forma como fiquei era a forma como dormia e que tanto carinho provocava na minha família: de costas, de patinhas inferiores abertas, as superiores meio encolhidas e, apesar de ter mordido a língua, de expressão serena e de bebé.

Tinha dois anos.

domingo, 4 de novembro de 2012

Intragável...

 Intragável:
Que não se pode tragar.

Tragar 
(origem obscura)

1. Engolir sem mastigar;
2. [Figurado] Comer ou engolir com avidez = DEVORAR;
3. Inalar fumo ou um gás = ASPIRAR, INSPIRAR;
4. Arrastar para dentro de si = ABSORVER, ENGOLIR, SORVER;
5. Submergir;
6. Fazer desaparecer = ANIQUILAR, DESTRUIR, ENGOLIR;
7. Devorar com cólera, olhar com cólera ou avidez = ENGOLIR;
8. [Figurado] Aceitar com tolerância; levar com paciência = AGUENTAR, ENGOLIR, SOFRER, TOLERAR;
9. Acreditar na verdade de algo
Confrontar: trajar

Pois... Há gente assim...

sábado, 3 de novembro de 2012

Eu, saudosa, me confesso...

Ouvi dizer. O que, neste caso, é para mim, no mínimo, doloroso.

Não estive presente no primeiro e no último concertos de Leonard Cohen. No primeiro, estava absorvida por demasiadas circunstâncias complicadas e não tive conhecimento, o que não deixa de ser estranho porque, na altura, era jornalista.

Neste último, quando os bilhetes foram postos à venda, não tinha 75 euros para ficar nas primeiras filas. Agora sou funcionária pública ou, melhor dizendo, trabalhadora (cigarra, na opinião imbecil de uns quantos cretinos, que trabalha que nem formiga) vendo a classe média, a que sempre pertenci, por um canudo cada vez mais estreitinho…

Ao contrário de muita gente, não necessitei de aprender a gostar do Cohen. Foi amor ao primeiro acorde. Adolescente ainda, ouvia sofregamente Suzanne e Joan of Arc. A voz dolente e a interpretação sofrida estimularam a minha necessidade de querer conhecer mais e mais. Não só sobre a arte que criava, como a pessoa que era.

Tímido em extremo, foi Judy Collins que o lançou depois de escutar diversas canções de que não gostou. Tinha acabado de ouvir, via telefone, o maravilhoso Suzanne e convidou-o para o próximo espectáculo dela. Na altura própria, apresentou-o e ficou a observá-lo. 

Hesitante e de guitarra na mão, entrou no palco, dirigindo-se ao microfone. A tremer, ficou a olhar para o público. Tentou começar a cantar, interrompeu e disse: “Lamento mas não consigo”, saindo de seguida para os bastidores.

Collins insistiu, tentou acalmá-lo e convencê-lo a regressar. Leonard Cohen cantou e foi ovacionado por gente deslumbrada e emocionada.

Tinha começado o longo e penoso caminho de uma história de encantar.

Em 1980 fui vê-lo ao Coliseu. Aos 46 anos, estava no auge do seu fascínio. Sempre de fato, cabelo escuro ondulado e curto, poucos fios prateados, realçado com gel. Voz muito mais grave e rouca, pelos anos de cigarros, noitadas, bebidas e drogas. Mas também mais amargurado que nunca. Olhar triste interrompido, por vezes, pela ironia – imagem de marca durante muitos anos.

Interagiu com a plateia, contou histórias de algumas canções como a do Chelsea Hotel nº 2, considerações sobre outras (Take this Waltz – versos de Lorca, o poeta espanhol que lhe “estragou a vida” e que nela está sempre presente porque deu o nome dele à filha numa homenagem sentida a um dos seus escritores preferidos -, em que com toda a elegância se aproximou do coro em passos dançados, e The Tower of Song).
Artista no verso e na palavra falada.

Consegui um encontro com ele no dia seguinte, minutos antes de partir na sua caravana para Barcelona. Conversa breve mas assombrosa. Nunca esqueci aquela cara, aquela afabilidade e calma, aquele olhar como não encontrei segundo, aquela voz que faz desaparecer tudo o que não seja ele.

(Disse há muito tempo neste blogue que tenho uma grande paixão na vida mas que a confissão ficaria para mais tarde. Está agora desvendada.)

A mulher foi sempre uma das suas debilidades e também uma das suas grandes dores. Sensibilidade notável para a entender e oferecer-lhe palavras que destronam os diamantes como o nosso principal amigo.

A vida não lhe tem sido fácil. Nunca o é para os superiormente inteligentes e grandes artistas.

Bono, com muita sabedoria, afirmou há uns anos: “Leonard Cohen é a única pessoa que conheço que esteve à beira do abismo, olhou para ele, e regressou a rir.”

Após o desfalque da sua antiga manager, digressão aos 70 anos. Lisboa no destino. Com a minha irritante costela burguesa, só por ele estaria cinco horas em pé. Com a memória dos seus 46 anos, custou-me ver um homem envelhecido, magro, cabelo branco e parco. Ilusão. Entrava e saía do palco aos saltinhos ou a correr. O olhar – sempre o olhar – estava pacificado. A expressão de menino, serena e profunda, a denunciar o quanto tinha aprendido com a vida. Nenhum sinal de cansaço.

Veio mais duas vezes, actuando destas vezes, no Pavilhão Atlântico. Estive presente.

Sempre com uma generosidade e humildade inultrapassáveis. Apresenta a banda diversas vezes e agradece ao coro individualmente. Quando não canta, dá o protagonismo aos músicos e esconde-se na escuridão. Ou, então, coloca um joelho no chão, tira o chapéu que fica reverentemente encostado ao peito, olhos fechados, cabeça inclinada. A música 
atravessa-o e chega até nós purificada.

Os encores são quase tantos quantos os que pedimos. Agradece a presença do público como se não merecesse a comparência dos que o veneram. Sim, porque cada espectáculo de Leonard Cohen é um retiro de espiritualidade redentora. A sentirmo-nos menores perante este homem maior.

Ouvi dizer.

Ouvi dizer que este concerto, com a duração de quatro horas, foi ainda mais zen. Que estava feliz e parecia não querer sair do palco como se soubesse que esta seria a sua última vez.

Ouvi dizer e senti o mundo tremer.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Eles não sabem...


Sabes, eles não compreendem. Ou melhor, há quem não compreenda e que é, provavelmente, a maioria.

Eu sei. Eu sei que tu e os outros são alheios a isso. E são porque a vossa condição é, em meu entender, maior. Talvez também por isso eu tenha dificuldade em aceitar essa falta de compreensão.

E é verdade. Tenho muita dificuldade. Acredito que isso não faça de mim uma pessoa melhor do que as que tenho dificuldade em compreender. De facto, nem é essa a minha intenção.

O que mexe comigo são as diferenças que apontam nos outros quando a diferença está apenas e só em nós.

Não há diferença no sofrimento de um ser que vê, de alguma forma, a sua infância, adolescência, vida e envelhecer alienados ou devastados. As disparidades estão no modo como lidamos com esses seres; como olhamos para eles; como escolhemos ou não ajudá-los.

Sabes, entristece-me que muitos não concebam que a vossa existência é uma benesse. Um presente divino, complemento da perfeição da própria vida que apenas nós teimamos em desmembrar.

Não há diferença no sofrimento. Há apenas na forma como reagimos. Vocês são filhos como quaisquer seres. Aliás, são filhos, irmãos, pais, netos, avós… Companheiros na verdadeira acepção da palavra. Talvez o facto de viverem menos do que nós seja, só por si, um presente. Só assim, e seguindo a ordem natural das coisas, podem ser tudo e tanto para nós.

Querido Luna,

És o melhor exemplo que conheci disso mesmo. Em pouco menos de um ano foste filho, pai, neto e companheiro da família que te acolheu. Quebraste barreiras que eles próprios julgaram impossíveis de vergar. Ensinaste, com a peculiaridade do teu olhar e da tua voz – doce e detentora da ternura infantil que provavelmente nunca conheceste – a importância do amor, da generosidade, da compaixão, da tolerância, da persistência e da coragem: características que vos definem, seres (ir)racionais, como nenhuma outra e que, convosco, ganha novo conceito.

Quem diz que não gosta de gatos é porque não sabe. Não conhece. Dizer-se que não se gosta de algo que não conhecemos é ignorância pura. Da mais elementar. É como dizer que não gosta de bebés humanos. Sim… É a mesma coisa porque se trata de seres vivos. É lamentável – para quem o diz e para vós. Talvez o sofrimento que vos é infligido fosse menor ou até completamente sanado.

O que me entristece verdadeiramente é que todas estas ideias não passam de uma estúpida e vergonhosa hipocrisia porque não é em relação a vós que praticamos o desrespeito a indiferença ou a desumanidade. É em relação a nós próprios. Somos nós que de forma consciente abandonamos, agredimos, matamos, ostracizamos e violentamos de uma forma geral qualquer ser vivo.

Temos tanto, mas tanto a aprender convosco que até parece impossível e, aos olhos de muitos, é mesmo.

Admiro a vossa capacidade de resistência, de aceitação. Admiro a vossa total ausência de resignação. Admiro a vossa entrega apenas e só pelo simples facto de que é essa a vossa missão.

Sabes Luna, há quem não compreenda mas a tua partida absurda repentina e inesperada é tão ou mais dolorosa quanto a de muitos entes de sangue. És parte integrante da família que te escolheu. Vergaste e conquistaste o carinho dos mais cépticos. Renderam-se totalmente a ponto de aceitarem na família um novo elemento condicionado por uma cegueira. Ofereceste-lhes coragem e motivação.

Há quem diga que os amigos são a família que nós escolhemos mas, no vosso caso, é mais do que isso: vocês são o amor no seu estado mais puro. Não digo que não existam pessoas como vós. Digo, sim, que a todos esses seres poucos de nós sabemos dar o devido valor.
Já perdi, e muito recentemente, entes como tu. Acredito na energia pura. Não sou apologista do “pó ao pó”. Acredito que a soma da totalidade dos seres vivos constitui um todo que nos transcende e que nos liga de forma perfeita, como numa equação matemática.

É por isso que sei que a tua existência, por curta que tenha sido aqui, não foi em vão e que o percurso que fizeste e o contributo que tatuaste vai reflectir-se durante muitos anos nas vidas de quem teve o privilégio de te conhecer.

Obrigada por tudo, querido Luna!


Até já!


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A morte iminente do Serviço Nacional de Saúde

Escrevi este mail e remeti ao principal interveniente da notícia. Peço que divulguem se assim o entenderem. 

Carta aberta ao
Exmo. Senhor Presidente do
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida,
Professor Doutor Miguel Oliveira da Silva

Acabei de ler uma notícia que, embora não representando qualquer novidade no chorrilho de pirataria que nos é aplicado diariamente pelos que (des)governam este país, não deixou de me chocar pelo infeliz conteúdo; pela lamentável constatação do receio de a (quase) totalidade de nós assistir à morte lenta e dolorosa do Serviço Nacional de Saúde que a TODOS pertence e no qual CAPITALIZAMOS (palavra de que devem gostar muito) o nosso contributo financeiro; e pelas declarações proferidas por Vossa Excelência que revelam, na minha opinião e no mínimo, uma incoerência absurda considerando as áreas e formação académica de que dispõe.

Interrogo a minha pessoa, com uns meros 35 anos de idade, detentora de um humilde 12.º ano mas segura das suas competências, parte integrante e orgulhosa da desprezada classe dos administrativos da saúde, como é que é possível que um homem de 56 anos, casado, com dois filhos, licenciado em Medicina com um doutoramento em Obstetrícia e ainda outra licenciatura em Filosofia, e professor na área da Ética Médica e Bioética, tenha defendido de forma tão patética quanto vergonhosa os argumentos que sustentam a apologia do corte das despesas no tratamento de doenças oncológicas, reumáticas e do vírus da imunodeficiência HIV? Restam muitas outras como o Parkinson ou Alzheimer porque essas nem são reconhecidas, por mais absurdo que pareça, como doenças crónicas.

"Portugal não continue a comportar-se como se fosse um país rico" – O que é Portugal? São as pessoas que estão doentes? Doentes porque sim; porque a qualidade de vida tem vindo a deteriorar-se; porque cada vez há mais gente deprimida; porque cada vez há mais factores fabricados que influenciam drasticamente a disseminação do estado enfermo das pessoas. É a este Portugal que se refere? Ou será que, à semelhança do que tem acontecido muito ultimamente, as suas palavras terão sido mal interpretadas e “quereria dizer” que os que mais têm, em vez de contribuírem para o orçamento do sector privado, deveriam recorrer mais vezes às instituições públicas para que este deixe de ser unicamente um negócio de mercenários, destruindo aquele que é um direito inalienável defendido pela Constituição da República Portuguesa? Qualquer país desenvolvido devolve aos seus cidadãos o direito à saúde e à educação para o qual todos contribuem.

"(…) número indiscriminado de ecografias mamárias, ou pélvicas, ou obstétricas, ou densitometrias" - nem vou discutir isto. Aliás, esta é uma questão que já tem a ver mais com a sua área de especialidade portanto saberá melhor do que ninguém que “prevaricações” serão cometidas pelos seus colegas de profissão. Interrogo-me, no entanto, quantos desses especialistas exercem funções em instituições de cariz público e depois encaminham os utentes para o sector privado imputando, no entanto, os custos ao estado que, reitero, somos TODOS NÓS!

“Vivemos numa sociedade em que, independentemente das restrições orçamentais, não é possível em termos de cuidados de saúde todos terem acesso a tudo. Será que mais dois meses de vida, independentemente dessa qualidade de vida, justifica uma terapêutica de 50 mil, 100 mil ou 200 mil euros? Tudo isso tem de ser muito transparente e muito claro, envolvendo todos os interessados” – Exmo. Senhor Professor Doutor Miguel Oliveira da Silva, agora a sério porque esta frase provocou-me uma verborreia mental: está doente e só tem dois meses de vida sentindo que não tem nada a perder e que, perdido por cem perdido por mil, é melhor dizer já todos os disparates da boca para fora?


Começo pelo princípio: “Vivemos numa sociedade em que, independentemente das restrições orçamentais, não é possível em termos de cuidados de saúde todos terem acesso a tudo.(…)” - Vivemos numa sociedade em que muitas coisas más acontecem. Mas porque continuamos a alimentá-las e não nos concentramos em corrigi-las? Não vou perder tempo a esmiuçar isto porque ambos sabemos a resposta.

(…) não é possível em termos de cuidados de saúde todos terem acesso a tudo.(…)” – quer então isto dizer que uns têm direito e outros não têm? Para além de isto ser ilegal e anti-constitucional é, uma vez mais, um saque aos pobres para dar aos ricos. (A classe média já não existe). Isto é xenofobia no seu pior! Discriminação social semelhante a outras a que já assistimos ao longo da história do planeta e que hoje criticamos acerrimamente. O que faz de nós, nos dias de hoje e com essa consciência, piores do que os que nos antecederam. Este foi o mesmo argumento que levou ao genocídio indiscriminado de povos, religiões, civilizações, etc. Aliás, com estas medidas só falta mesmo recriarem os célebres campos de concentração - já que é para morrer…

Será que mais dois meses de vida, independentemente dessa qualidade de vida, justificam uma terapêutica de 50 mil, 100 mil ou 200 mil euros?(…)” – Aqui quase tive uma embolia cerebral com a efervescência que o meu sangue atingiu. Tive que despejar um balde de gelo em cima para não correr o risco de agravar os custos de uma terapêutica. Quanto vale, a um médico, uma vida? A sério: vocês já não fazem o juramento de Hipócrates, pois não? Ou então mudaram-lhe duas letras e ficou apenas o juramento de Hipócritas. Desde quando ser médico, defender uma vida a todo o custo, se transformou num negócio obscuro mercantilista e mercenário comparável ao tráfico de drogas e a negociatas mafiosas? Como é possível que um médico não tenha noção de que, perante a certeza de um “prazo de validade” e a esperança da melhor qualidade de vida possível durante o período que o sofrimento perdurar, qualquer dia a mais é uma benesse para, muitas vezes, resolver-se na vida? Como é possível um ser humano dizer a outro ser humano que, considerando que lhe restam apenas dois meses de vida, não vale a pena investir no que de melhor a medicina lhe pode proporcionar? Diga-me, Senhor Professor, negaria à sua esposa ou aos seus filhos essa possibilidade apenas e só porque 50 mil, 100 mil ou 200 mil euros que podiam ser cerceados, por exemplo, através de cortes em mordomias do estado, não se justificariam para um “tão curto espaço de tempo”? Para si são dois meses. Para quem agoniza às portas da morte assistindo à miragem de um tratamento que minimizasse a sua dor significa uma vida, Senhor Professor. Não desejo mal a ninguém. Não me considero uma pessoa rancorosa. Acredito apenas que a vida se encarrega de nos dar lições. Espero, sinceramente, que o Senhor Professor tenha a humildade e a capacidade de as apre(e)nder.

Uma cidadã portuguesa atenta e sensível ao direito à vida de todos os seres.

Notícia aqui

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Conversas (Im)prováveis - Lealdade vs Fidelidade


Sete anos passados, breve paragem no tempo…

- Luísa, é a primeira vez que te trato por tu. Faço-o porque hoje já sei dar-me ao respeito. Já sei o que vais dizer ou fazer. Se estivesse no teu lugar, no mesmo contexto e circunstâncias, presumo que reagisse como tu.

(Descontraí) Percebi, no entanto, ao longo destes sete anos, a diferença entre lealdade e fidelidade. Sinceramente, a fidelidade não me diz nada na ausência de lealdade. Quando contribuímos, com o nosso próprio comportamento e negações para a morte da lealdade, a fidelidade deixa de fazer sentido.

Hoje sei que há alturas na vida em que temos de ter a coragem de parar e pensar se determinada situação é salutar para nós. Num relacionamento carente nunca há apenas um culpado. É esse o princípio de uma relação: a transversalidade. Por vezes o mais difícil é respondermos às questões “sou feliz?”; “ele(a) é feliz?”; “o que falta?”; “é possível?”; “gosto dele(a) pelo que quero que seja ou pelo que é?”; “aceito-o(a)?”; “aceito-me?”; “temos bom ambiente?”. Quando a maior parte, senão todas as respostas a estas perguntas são negativas, é sinal de que está instalado um cancro que é preciso curar.

Por vezes, a melhor forma de se amar uma pessoa é abdicar dela. Por outro lado, a melhor forma de o fazer é libertá-la. Deixá-la voar pois só assim ela poderá voltar para nós. Aceitar que ela nos ame, não como queremos mas da melhor forma que ela sabe e pode, é uma benesse.

Luísa, é a última vez que te trato por tu apenas e só porque, hoje, me dou ao respeito.

(Virei costas e vim-me embora, pacificada)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Anúncio: nova rúbrica


Ainda que os temas abundem, temos tido dificuldade em escrever.

Hoje tivemos uma ideia que achamos engraçada e, eventualmente, útil. Consideremo-lo uma experiência e, ao mesmo tempo, um desafio.

Arriscamos concluir que estes não são momentos exclusivamente nossos. Ou seja, acreditamos que todos partilham de semelhantes oportunidades.

Quem é que, de quando em vez, não revê uma determinada situação e deseja que a mesma se tivesse proporcionado diferentemente? Quem é que nunca, após acontecimentos passados, deu por si a imaginar uma conversa improvável com o que gostaria de dizer caso voltasse a encontrar os protagonistas de um enredo já acontecido?

É a isto que nos propomos: passar para o papel electrónico as nossas conversas improváveis.

Será uma forma de nos conhecermos melhor, de descobrirmos o que seríamos capazes de dizer sob determinadas circunstâncias e de percebermos o que mudou em nós face a adversidades que enfrentamos.

Damos início, assim, às Conversas (Im)prováveis.

Até já!

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Carta aberta ao mundo

Todas as palavras de todos os dicionários, vocabulários e idiomas do mundo seriam poucas para transmitir o que gostaria. Vou tentar fazê-lo da forma mais assertiva possível, sem atropelar a minha sensibilidade. Afinal, é ela que aqui me traz. 

Sou muitíssimo céptica em relação às tão famigeradas redes sociais. Sempre fiz muita resistência porque sei que no que à informática ou, se preferirmos, às tecnologias diz respeito, nada é infalível. Os que não pensarem nas repercussões que a partilha de determinados acontecimentos da sua vida e de informações pessoais pode ter, é porque são ignorantes, levianos ou indiferentes ou outras coisas quaisquer nas quais me incluo. 

Sou uma desconfiada por natureza. Sim… É este um dos motivos pelos quais utilizo um pseudónimo embora saiba de antemão que é muito fácil desmontá-lo. Também por isso utilizo outras alternativas que não vêm agora para o caso. 

Mas como nem tudo é mau descobri algo de muito bom com isto e de que só há muito pouco tempo me apercebi: as partilhas e, com elas, as aprendizagens e enriquecimento interiores. 

Verdade seja dita que também há muito “lixo” ou “ruído” – como quisermos chamar – que precisa de ser filtrado e em relação ao qual temos de estar muito atentos. Articular uma mente aberta com a capacidade de raciocínio lógico é difícil nos tempos que correm. ESPECULAÇÃO: é o monstro sem cara que assola o nosso quotidiano nas mais diversas vertentes. 

Adiante… Há algo que me conduz aqui e como considero que tudo está interligado por meio de canais invisíveis que, melhor ou pior, bem ou mal, racional ou irracionalmente nos influenciam ou condicionam, senti uma necessidade verborreica de dizer “coisas” e de questionar quem considerar enquadrar-se nos perfis ou souber e quiser responder. 

Não tenho a presunção de esperar respostas mas pode ser que as palavras fluam e, quem sabe, contribuam para algo, por muito pouco significativo que seja. 

Vida; Fauna; Flora; Plantas; Animais – que inclui milhões de variedades abrangendo o tão famoso Homo Sapiens –; Natureza; Universo; Infinito… 

Do fim para o princípio parece-me, curiosamente, que na prática vivemos “em rede”. Haverá, com certeza e por um lado, um ponto de equilíbrio cíclico e, por outro, um factor desestabilizador talvez por “culpa” da evolução. O primeiro consistirá, eventualmente, em “limpar”, reequilibrar, “reciclar” ou renovar a fonte de existência: a vida em qualquer das suas formas. O segundo é mais complexo porque tende a contrariar o primeiro: a existência irónica, controversa e paradoxal de um ser – o Homem; irónica porque provém das mesmas raízes de qualquer outro animal na verdadeira acepção da palavra - sem sentido pejorativo; controversa já que a sua presença consubstancia, por acréscimo, a predicação atribuída erroneamente por si mesmo à própria existência da sua ou de qualquer espécie, ser vivo ou tipo de vida ou ausência dela; paradoxal porque, tendo as mesmas raízes, o seu comportamento revela uma superioridade ilusória, arrogante e displicente. 

São muitos e cada vez mais os canais de “animais” que subscrevo - os que são diferenciados como “irracionais”. Considero-os de uma riqueza sublime com as fotos e frases que partilham e que mais não são do que a realidade espelhada numa pequena caixa tecnológica. É mais fácil admirá-las assim porque estamos “formatados” para vislumbrar o que retemos como objecto das nossas mais profundas fantasias e, quando confrontados com uma “utopia” real, questionamo-nos sobre a sua veracidade. Muitas vezes basta OLHAR pela janela e ver as tais fantasias desmistificadas e bem reais. Não lhes sabemos dar o devido valor precisamente porque estão ali… ao alcance do tacto, do olfacto, da visão, da audição, do paladar e de todos os outros sentidos que desconhecemos ou tendemos a ostracizar. 

Bolas que me disperso! Se é que ainda alguém está a ler isto vou já directa ao assunto. 

Cheguei, arrastada pela sociedade, a um ponto em que me sinto compelida a colocar questões que de inéditas nada têm e é por isso que me suscitam maior inquietação. 

Acredito que estamos cá para aprender mas sinto que, generalizando e cingindo-me apenas e só à fonte da qual todos provimos – seja ela qual for – não aprendemos absolutamente nada. Estamos carecas de cometer erros e, afinal, por mais que o digamos, NÃO APRENDEMOS COM ELES! Pior: descobrimos novas formas de voltar a cometê-los de maneira mais desenvolta, elaborada, subtil e dissimulada. É óbvio que estou a universalizar mas sei que felizmente há gente mais próxima de um ideal verdadeiramente harmonioso. 

Correndo uma vez mais o risco de ser presunçosa, isto é material para muitos técnicos da área de saúde mental (e não só). 

1ª questão: será que somos todos mentalmente saudáveis tendo como referência, não os parâmetros sociais em que vivemos, mas os que seriam verdadeiramente ideais? 

2ª questão: há actualmente alguém que tenha a capacidade ou a legitimidade de definir o que é realmente ideal? 

Sou susceptível. Incrivelmente melindrosa face a determinados acontecimentos a que assisto ou de que tenho conhecimento e nas mais diversas vertentes. 

Como é que é possível, passados milhares de milhões de anos, evolução, ERROS comprovados e assumidos, continuarmos a assistir, a fomentar e a praticar comportamentos que, ao contrário do que defendemos tão acerrimamente, nos distanciam de TODOS os outros seres, mas pelos piores motivos? 

Que moral temos para criticar mas também para defender determinadas doutrinas e princípios, quando, na prática, somos coniventes – silenciosos ou não – de todas as atrocidades que continuam a ser cometidas contra a vida em todo o seu sentido lato? – Friso que estou a generalizar. Infelizmente, a minoria não faz a força embora contribua, muitas vezes, para uma significativa diferença. 

Mas que raio de síndrome cega-surda-muda nos contagia, manipula, escraviza e faz de nós seres letárgicos passivo-agressivos legitimantes do “8 e 80”? Isto já nem sequer é um ensaio. É mesmo uma representação permanente de cegueira cíclica e interactiva em que o público se cinge a si próprio e a cada um de nós. 

Confesso: a partilha das fotos, dos testemunhos, da imaginação cinzenta e atroz que anunciam a possibilidade de tantas outras barbaridades, trouxeram-me aqui. 

Em poucas semanas o meu imaginário infantil foi violentado, desacreditado, e quase apagado. Resta-me uma réstia ou já me teria juntado aos “não vencidos” – a fracção dos que (acham) se sentem bem assim. 

Ignorância crua, eu sei. Ou credibilidade estupidamente ingénua. Ou ainda ambas e outras coisas. Padeço do mesmo mal que quase todos nós apresentamos: o desconhecimento, desinteresse ou ignorância praticamente absolutos dos terrores que acontecem no mundo pelas nossas próprias mãos – directa ou indirectamente. 

Talvez sejam essas as mesmas características que definem as nossas reacções perante estes acontecimentos, associadas a outras que, arrisco dizer, condicionam, moldam e referenciam o nosso carácter. É isto que me assusta verdadeiramente: a diabólica sociedade em que estamos embutidos, e que ao longo dos tempos tem vindo a esculpir e a manipular sinistramente as nossas mentalidades. Consequência: hoje podemos orgulhar-nos de sermos habitantes de um planeta maravilhoso mas trôpegos, impotentes, inertes, embrutecidos e escravizados. Estamos formatados para que os nossos cérebros processem apenas o banal e supérfluo. 

Chegados aqui, resta-nos o “8 ou 80”. Poucos são os que conseguem o mérito de manter o meio termo. 

Agora que escrevo isto, percebo que, de facto, não posso, não devo e muito menos tenho o direito de julgar quem quer que seja. Somos todos fruto da mesma máquina implacável. 

A sociedade em que vivemos e que, creio (quero acreditar), está a chegar ao fim é, salvo raras excepções, uma sombra corrompida, suja, cruel, devastadora e vergonhosa do que de pior há em nós – seres “racionais”. A meu ver, é a racionalidade que nos “monstrualiza”. Que nos afasta da nossa essência. Que faz com que deixemos de nos sentir ligados à terra. Sim… É essa característica que nos separa dos outros seres mas, na maioria das vezes, pelos piores motivos. 

Já passámos por períodos tão polémicos, reconhecidamente avassaladores social e moralmente mas que, apesar da nossa aparente evolução, permanecem no nosso inconsciente levando-nos a repeti-los indefinidamente. Sinceramente, e perdoem-me a ignorância, não encontro qualquer diferença entre os primordiais tempos da reconhecida Roma Antiga - alicerce da actual civilização, surgida de uma comunidade agrícola e que veio a tornar-se numa oligarquia desmesurada -; a época das colonizações; a “Santa” Inquisição; as guerras civis; a tão famosa revolução industrial; sem esquecer as guerras mundiais que arrastaram milhões de vítimas e que, na minha opinião, se mantêm vivas. 

À face de tudo isto, a minha réstia de genuinidade infantil comum a todos nós, questiona-se “porquê”. Porquê e para quê? O que é que move massas apenas e só pelo poder de poder? Porquê um hiato tão imensamente ridículo quanto monstruoso se, no fundo, apenas precisamos uns dos outros? Porquê expropriar o planeta; os seres vivos; as gentes, de sonhos, esperança, harmonia se todos podemos ter tudo? Acredito que o Homem tem um papel preponderante a desempenhar mas abomino a ideia de que seja imprescindível. Acredito que, por algum motivo, nos foi dada uma oportunidade para, em “rede”, podermos contribuir para uma verdadeira existência pacífica e conjunta sem limites, mas respeitando-os. 

Não sei se existe, na prática, um verdadeiro conceito de bem ou mal – lutas entre forças desiguais ou em aparente constante competição. Não sei nem me arrisco falar disso. Acho que são inúmeras as hipóteses. 

O que me interessa verdadeiramente é saber que habita em mim a certeza de que o nosso maior desafio é, independentemente dos credos, características, conceitos e vivências, ultrapassá-los provando que todos os seres são realmente parte de cada um e que nessa cadeia existe um ciclo infindável que não nos separa – une! 

Eu acredito que, de facto, “chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais”, e, consequentemente, o seu. Nesse dia, o crime deixará de subsistir porque deixaremos de nos perder. 

É este o meu sonho! É esta a minha utopia que a minha fortaleza infantil mantém acesa no meu coração!

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A não notícia - DPTS

Subscrevo, uma vez mais, o conteúdo deste post e deste blogue que considero assertivo, cuidadoso nas análises que faz e impressionantemente esclarecedor. Vale a pena!



DPTS

quinta-feira, 12 de julho de 2012

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Uma luz chamada Lena

Hoje perdemos uma Amiga mas, acreditamos, a eternidade ganhou uma estrela.
Há acontecimentos que nos fazem questionar a própria vida e a eventual impotência que sentimos quando, por exemplo, nos varre e desmembra a perda de alguém que nos é querido.
As circunstâncias que antecedem a sua partida agravam, muitas vezes, o sentimento de injustiça para com aquele ser.
A Lena era uma mulher interessante, inteligente, serena perante a vida e as pessoas.
Passou por muito. Diríamos mesmo, por demasiado, dadas as poucas recompensas que teve da vida. Apesar disso, fazia sempre por estar bem disposta quando os problemas físicos não davam conta dela.
Passou os últimos 10 meses da sua vida numa cama de hospital. Deixou de comer, de falar, entrou em coma e redespertou demasiado fragilizada. Deixou de ver e o seu esforço em querer falar dilacerava quem a queria ouvir.
Acreditamos que lutou até ao final apesar de, além das filhas já independentes, pouco ou nada ter para se agarrar à vida mas em circunstâncias como esta era demasiado fácil desistir. Não o fez.
Sucumbiu, finalmente, a este longo período de sofrimento.
Porquê - perguntamos nós?
Como as respostas teimam em parecer surreais, queremos acreditar que era o caminho que tinha de percorrer e as provas pelas quais tinha de passar para conquistar o seu devido lugar na 'tal eternidade'.
Falamos dela no passado passando para o futuro pois acreditamos que, esteja onde estiver - seja nos corações de quem dela gostava, seja num qualquer lugar que todos nós almejamos encontrar - ela é finalmente feliz e um ser de luz!
As reticências da tua passagem por aqui, aplicam-se agora mais do que nunca, na expectativa de que, de alguma forma, voltemos a reencontrar-nos com as nossas brincadeiras inesquecíveis.
Até já, Lena! Nunca te esqueceremos...




quinta-feira, 17 de maio de 2012

Há vida na minha casa


Senti-me escolhida por alguma razão. Crenças, a que alguns dão o nome de “toques”.

Sem respeitar o protocolo, não tocou à campainha nem entrou pela porta. Foi directamente para o parapeito onde, por detrás da janela, viu uma gaiola com dois congéneres. O que, para mim, era definitivamente macho, com a mudança de cor da cera do nariz, passou a ser definitivamente fêmea.

O Yuri apaixonou-se por ela. Despeitada pela indiferença do Blue, tentava meter-se com ele. Empreendimentos frustrados porque o retorno era um pio rouco e zangado ou, mais frequentemente, picadas agressivas.

A minha bolinha azul clara, de coração bondoso e feitio afável, que acolhera o Yuri como um filho perdido, desligou-se, isolou-se e entrou noutra dimensão.

Durante cerca de um ano, brincaram, beijaram-se, coçaram-se, deram comida um ao outro, cuidaram-se. Estou em crer que a presença serena, firme e comportada do patriarca os encavacava de se relacionarem mais intimamente, se bem que ele não estivesse nem aí.

O meu Blue morreu.

Foi então que o Yuri começou a não parar quieto, dando um excelente anúncio sobre disfunções sexuais – como se nasce para o sexo após seis anos de abstinência por motivos desconhecidos ou simplesmente por falta de fêmea.

Aqui para nós, a Cuca também é uma boa safada – vai lá, vai.

Perdi a conta aos ovos que pôs mas descobri que uma das missões dela consiste em trazer vida à minha casa. Os esforços deram, até agora, três periquitos, sendo que um deles é igual à mãe.

Não, não. Não vou nessa, não. Já não arrisco. Sei lá se são machos ou fêmeas. Aguardo que a cor da cera estabilize.

A Cuca é uma mãe muito vigilante, carinhosa e disponível, até que a as crias saem do ninho. A partir de então, chaqun governa-se.

O Yuri fica mais tem-te, não caias e prolonga o tempo de atenção mas rapidamente se dispersa com o rabo da Cuca.

O ninho nem sequer é retirado. Desde que o coloquei na gaiola, mantém-se. A actividade estonteante daqueles dois faz aparecer e multiplicar ovos.

O Yuri já viveu bem mais de metade da vida dele. Se o seu vigor fosse público, estou certa de que os aditos sexuais humanos pareceriam extraterrestres: verdes de raiva e inveja, espumando-se, bufando, dizendo mal do azul e da indústria farmacêutica.

Ah, pois é, cada um tem o que merece… 

quarta-feira, 14 de março de 2012

As palavras dos outros...

Dedicado à minha Amiga de sempre e para sempre, Vírgula.

Antes que seja tarde

Antes que Seja Tarde Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas como as águas de um lago adormecido, acorda!

Deixa de vez as margens do regato solitário
onde te miras como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores desse país inventado
onde tu és o único habitante.

Deixa os desejos sem rumo de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia às coisas do mundo.
Acorda, amigo, liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe apenas na tua imaginação.

Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo, antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Amor de Filha

Este texto surge pela nossa necessidade de dizermos aos nossos pais o que não somos capazes.

Estas palavras não são da nossa autoria mas subscrevemo-las na íntegra já que reflectem o que sentimos e, na nossa opinião, é um texto magistralmente bem escrito.

Foi retirado daqui.

Obrigada a quem o escreveu!


AMOR DE FILHA

Nem sempre somos capazes de dizer o que sentimos àqueles que mais amamos, como se o sentimento fosse vergonhoso.
Nem sempre os gestos voam livremente.
Nem sempre o sol brilha quando chove.
E só quando elas morrem, só aí nos remoemos por as palavras não terem saltado para onde sempre pertenceram.
Hoje, porque o sol ainda brilha e porque hoje ainda não chove, hoje eu quero dizer-te mãe que te amo.
Só isto mãe...Amo-te.
Levo o sonho ao pensamento e vejo que os grandes textos são sempre dedicados às mães.
Mas porque nem as minhas palavras cimentam um grande texto nem porque o meu amor é limitado...Para mim não! Amo-te pai...Só isto...Amo-te.
Se pudesse oferecer-vos-ia as estrelas do céu para que nunca o nosso mundo escurecesse.
Mas vocês diriam: "Não podes filha. Não vês que é impossível roubar as estrelas? Não vês que elas pertencem ao céu azul?"
Não me importa que vocês não percebam a poesia e que a liberdade é verde.
Eu posso, eu dou as estrelas e o sol e a lua e as nuvens e tudo o que pertence ao céu pois dizem que é ai que se encontra o paraíso.
Eu não acredito na palavra dos homens mas tu mãe dizes que Deus se encontra no céu e eu quero acreditar em ti.
Porque tu mãe não és como eles.
És inocência que alimenta.
És pureza em ser divino.
És sonho que aconchega quando o sono vem.
Tu és mãe que com os teus beijos secam as lágrimas que insistem em descer ao mundo dos infelizes.
Mãe de mãos suaves que puxa o cobertor para que o frio não entranhe em mim e naquilo que sou.
Quando vivemos com os homens transformamo-nos também em bestas sadias, em cadáveres adiados que procriam.
Mas tu não pai.
És força em gestos macios que nos acariciam nas noites de solidão.
És folha que se mantém no ramo.
És amor que inunda em nós.
Nunca eu te vi um rosto rude, nunca eu te senti as mãos ásperas como as mãos daqueles homens.
Pai que soma os seus abraços em braços pequenos como os meus.
E eu pai? E eu mãe?
Era assim que me sonhavam?
Matei eu peixes sem beijos doces que os fariam adormecer?
Eu não sei ou como costumo dizer sei lá eu...mas deixo-vos mel para que a chávena fique sempre quente, bem quentinha como as minhas mãos nos dias de inverno.
Obrigada...era isto...nem sempre os meus olhos, que afinal são claros, se tornam em transparência branca de quem acorda com a luz solar a entrar pela janela mas, se olharem para o seu interior, que afinal não é escuro, descobrirão que eles vos devolvem os gestos segredados em liberdade sentimental.
Era isto...dizer que vos amo mais do que tudo nesta e na outra vida...mas também eu sou humana e, por isso, não sei se algum dia terei coragem de vos mostrar estas palavras e o amor que as preenche...