Não posso contar. São memórias apenas
minhas. Como não tenho capacidade para escrever, encomendei este texto – e quem
o escreve não entende a minha linguagem.
Andei na rua, com todas as vantagens
e desvantagens de ser sem-abrigo. Mas não sei o que é a agressividade nem a
revolta – apenas o instinto de sobrevivência. A doçura é uma das minhas
características.
Não sou bonito. Há até quem me chame
feio. Sou estrábico e os meus olhos não são iguais. O direito tem umas
pálpebras normais; o esquerdo está definido a negro como se tivesse eyeliner.
Um dia deparei com uns portões verdes
de ferro abertos. Entrei e vi um pátio grande, zona de estacionamento, com
alguns pequenos locais com terra. Ideal para a minha exaustão. Deram por mim,
começaram a dar-me comida, água e mimo. Dormia debaixo dos carros e corria,
livre, por aquela zona de pedra.
Não tinha motivos para abandonar o
sítio onde tinha encontrado alguma segurança e conforto. Fiquei.
Desconhecia mas voavam e-mails com a
minha fotografia na esperança de me encontrarem uma família adoptiva. Confesso
que comecei a deprimir. Carência sem fim, deixei de comer. Necessitava de atenção,
carinho e calor humano.
Também não sabia, mas a minha
presença, anódina, começava a incomodar. Uns queriam-me, outros não me queriam.
Encontrava-me numa instituição pública e o director avisou, quem de mim gostava,
que não sabia que eu estava lá mas
que já havia movimentos de descontentamento e se lhe formalizassem a queixa
teria que passar a ter conhecimento e
pôr-me na rua.
Insistiram nos e-mails. No dia 23 de Outubro de 2011, num domingo chuvoso, foram
buscar-me. A minha amiga Segurança de serviço ficou a chorar de dor e eu não
sabia ao que ia.
Entrei, medroso e sujo, numa casa com
tudo preparado para me receber. Chamaram-me Luna. O meu avô dizia que eu ficaria traumatizado por ter nome de mulher…
Nas duas primeiras noites dormi
debaixo de uma cama que me fazia lembrar o refúgio dos carros. Mas a cama foi
substituída por um sommier largo e
grande. O meu instinto fez-me subir e dormir num dos cantinhos não fosse ter
que fugir rapidamente. Tinha uma mantinha linda, às cores e muito fofinha,
especialmente escolhida pela minha tia S. Mas não a queria em cima de mim – não
a minha tia!, que adoro, mas a manta!
Afinal, estava habituado ao frio, ao
calor e ao vento.
Poucos dias depois, durante os meus
passeios nocturnos pela casa, encontrei a janela da cozinha ligeiramente aberta
com os estores não completamente descidos. Esforcei-me, levantei as persianas
com a cabeça e passei para o parapeito de fora. A minha mãe, atenta que nem rato experiente de esgoto, apercebeu-se e veio
a correr. Eu, feliz, a percorrer aquele passeio. Ela, em pânico, encostada a um
armário. Quando a vi chorar, fiquei a olhar estarrecido sem perceber patavina
mas achando que o melhor era voltar depressinha para dentro. E lá fui eu. Vi-me
coberto de beijos e de abraços. Excelente recompensa.
Um episódio que se repetiu por mais
três vezes. Adoptaram outra estratégia. Aparentemente não se enervavam e
chamavam-me sem se aproximarem para não me assustar. Finais felizes, diziam.
Andava o dia todo atrás da minha avó. Pobre e querida senhora. Sentia-se
só e falava comigo constantemente de tudo e nada. Adorava ouvi-la tagarelar e cantarolar.
Inseparáveis.
Ficava aborrecido, claro está, quando
a minha mãe saía todas as manhãs.
Dizia-me que ia ganhar dinheirinhos para a minha papinha… He-e… Dois dias por
semana ficava em casa. Que raio de sentido é que isto faz? Quando voltava, no
final da tarde, era o primeiro a chegar à porta. Chamava por ela sem
compreender por que não a via. Mas homem que é homem não dá abébias. Queria
beijar-me e eu voltava-lhe o rabo. “Não, não, minha querida – pensava –, agora
hás-de penar! Ora toma lá, vai buscar…”
A minha família considerava que eu
tinha um olhar expressivo e lindo. Percebiam se não estava para amar, se tinha sono ou se queria alguma coisa.
Acima de tudo, os meus olhos são suplicantes como os de uma criança
bem-comportada. Com a minha voz de bebé, chamava a avó para me fazer companhia a comer.
A mãe
deu-me brinquedos, um iglo e um
ginásio. Coitada. Não percebia que eu não sabia brincar, que não me sentia bem
fechado e o que me agradava mesmo era afiar as unhas naquela estrutura
encarnada.
O meu local preferido era o bar
localizado numa varanda fechada, rodeada de janelas. Saltava e estava horas lá
em cima, a dormir ou a ver o movimento da rua. Sou muito branquinho, com o
nariz rosinha e o médico não queria que eu apanhasse sol, mas, convenhamos,
também não me agradava nada. Um incómodo para os meus olhos azuis tão claros…
Pedia frequentemente à avó e à mãe para me agarrarem e abrirem uma janela. Sabia que era a única
maneira de conseguir cheirar o vento e de ver o mundo.
Quase um ano depois, entrou um
gatinho cego lá em casa, o Stevie. A minha presença, meiga e ansiosa de o
acarinhar, assustava-o. Era perito em bufar
quando me sentia. Voltava-me, ia-me embora, dando-lhe espaço, tentando segunda,
terceira e tantas vezes mais que ele me aceitasse.
Um dia, aproximei-me, e, devagarinho,
estendi-lhe a mão para lhe fazer uma festa. Não reagiu mas não quis abusar. Foi
o último gesto que o avô me viu
fazer.
Depois do almoço deram pela minha
falta. Procuraram-me pela casa toda até que perceberam que uma das janelas do
bar estava um pouco aberta. Pensaram no aparentemente impossível.
A Valesca, grávida de poucas semanas,
saiu disparada de casa, e foi às traseiras. Estacou ao ver-me. O encarregado da
piscina estava ao pé de mim.
- O gato é seu? – perguntou.
- Sim… Não… É dos meus patrões…
O homem deu-me um pontapé.
- Está morto!
Sem parapeito e com um espaço tão
pequeno, o meu esforço foi tão intenso que caí no vazio.
Vim da rua e para a rua regressei.
Definitivamente.
Morri como vivi. Sem dar trabalho,
silenciosamente, anonimamente, humildemente. Até a forma como fiquei era a
forma como dormia e que tanto carinho provocava na minha família: de costas, de
patinhas inferiores abertas, as superiores meio encolhidas e, apesar de ter
mordido a língua, de expressão serena e de bebé.
Tinha dois anos.