quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O amante das ruas...

Não posso contar. São memórias apenas minhas. Como não tenho capacidade para escrever, encomendei este texto – e quem o escreve não entende a minha linguagem.

Andei na rua, com todas as vantagens e desvantagens de ser sem-abrigo. Mas não sei o que é a agressividade nem a revolta – apenas o instinto de sobrevivência. A doçura é uma das minhas características. 

Não sou bonito. Há até quem me chame feio. Sou estrábico e os meus olhos não são iguais. O direito tem umas pálpebras normais; o esquerdo está definido a negro como se tivesse eyeliner

Um dia deparei com uns portões verdes de ferro abertos. Entrei e vi um pátio grande, zona de estacionamento, com alguns pequenos locais com terra. Ideal para a minha exaustão. Deram por mim, começaram a dar-me comida, água e mimo. Dormia debaixo dos carros e corria, livre, por aquela zona de pedra.

Não tinha motivos para abandonar o sítio onde tinha encontrado alguma segurança e conforto. Fiquei.

Desconhecia mas voavam e-mails com a minha fotografia na esperança de me encontrarem uma família adoptiva. Confesso que comecei a deprimir. Carência sem fim, deixei de comer. Necessitava de atenção, carinho e calor humano. 

Também não sabia, mas a minha presença, anódina, começava a incomodar. Uns queriam-me, outros não me queriam. Encontrava-me numa instituição pública e o director avisou, quem de mim gostava, que não sabia que eu estava lá mas que já havia movimentos de descontentamento e se lhe formalizassem a queixa teria que passar a ter conhecimento e pôr-me na rua.

Insistiram nos e-mails. No dia 23 de Outubro de 2011, num domingo chuvoso, foram buscar-me. A minha amiga Segurança de serviço ficou a chorar de dor e eu não sabia ao que ia.

Entrei, medroso e sujo, numa casa com tudo preparado para me receber. Chamaram-me Luna. O meu avô dizia que eu ficaria traumatizado por ter nome de mulher… 

Nas duas primeiras noites dormi debaixo de uma cama que me fazia lembrar o refúgio dos carros. Mas a cama foi substituída por um sommier largo e grande. O meu instinto fez-me subir e dormir num dos cantinhos não fosse ter que fugir rapidamente. Tinha uma mantinha linda, às cores e muito fofinha, especialmente escolhida pela minha tia S. Mas não a queria em cima de mim – não a minha tia!, que adoro, mas a manta! 

Afinal, estava habituado ao frio, ao calor e ao vento.

Poucos dias depois, durante os meus passeios nocturnos pela casa, encontrei a janela da cozinha ligeiramente aberta com os estores não completamente descidos. Esforcei-me, levantei as persianas com a cabeça e passei para o parapeito de fora. A minha mãe, atenta que nem rato experiente de esgoto, apercebeu-se e veio a correr. Eu, feliz, a percorrer aquele passeio. Ela, em pânico, encostada a um armário. Quando a vi chorar, fiquei a olhar estarrecido sem perceber patavina mas achando que o melhor era voltar depressinha para dentro. E lá fui eu. Vi-me coberto de beijos e de abraços. Excelente recompensa. 

Um episódio que se repetiu por mais três vezes. Adoptaram outra estratégia. Aparentemente não se enervavam e chamavam-me sem se aproximarem para não me assustar. Finais felizes, diziam.

Andava o dia todo atrás da minha avó. Pobre e querida senhora. Sentia-se só e falava comigo constantemente de tudo e nada. Adorava ouvi-la tagarelar e cantarolar. Inseparáveis.

Ficava aborrecido, claro está, quando a minha mãe saía todas as manhãs. Dizia-me que ia ganhar dinheirinhos para a minha papinha… He-e… Dois dias por semana ficava em casa. Que raio de sentido é que isto faz? Quando voltava, no final da tarde, era o primeiro a chegar à porta. Chamava por ela sem compreender por que não a via. Mas homem que é homem não dá abébias. Queria beijar-me e eu voltava-lhe o rabo. “Não, não, minha querida – pensava –, agora hás-de penar! Ora toma lá, vai buscar…”

A minha família considerava que eu tinha um olhar expressivo e lindo. Percebiam se não estava para amar, se tinha sono ou se queria alguma coisa. Acima de tudo, os meus olhos são suplicantes como os de uma criança bem-comportada. Com a minha voz de bebé, chamava a avó para me fazer companhia a comer.

A mãe deu-me brinquedos, um iglo e um ginásio. Coitada. Não percebia que eu não sabia brincar, que não me sentia bem fechado e o que me agradava mesmo era afiar as unhas naquela estrutura encarnada.

O meu local preferido era o bar localizado numa varanda fechada, rodeada de janelas. Saltava e estava horas lá em cima, a dormir ou a ver o movimento da rua. Sou muito branquinho, com o nariz rosinha e o médico não queria que eu apanhasse sol, mas, convenhamos, também não me agradava nada. Um incómodo para os meus olhos azuis tão claros…

Pedia frequentemente à avó e à mãe para me agarrarem e abrirem uma janela. Sabia que era a única maneira de conseguir cheirar o vento e de ver o mundo.

Quase um ano depois, entrou um gatinho cego lá em casa, o Stevie. A minha presença, meiga e ansiosa de o acarinhar, assustava-o. Era perito em bufar quando me sentia. Voltava-me, ia-me embora, dando-lhe espaço, tentando segunda, terceira e tantas vezes mais que ele me aceitasse. 

Um dia, aproximei-me, e, devagarinho, estendi-lhe a mão para lhe fazer uma festa. Não reagiu mas não quis abusar. Foi o último gesto que o avô me viu fazer.

Depois do almoço deram pela minha falta. Procuraram-me pela casa toda até que perceberam que uma das janelas do bar estava um pouco aberta. Pensaram no aparentemente impossível.

A Valesca, grávida de poucas semanas, saiu disparada de casa, e foi às traseiras. Estacou ao ver-me. O encarregado da piscina estava ao pé de mim.

- O gato é seu? – perguntou.

- Sim… Não… É dos meus patrões…

O homem deu-me um pontapé.

- Está morto!

Sem parapeito e com um espaço tão pequeno, o meu esforço foi tão intenso que caí no vazio.

Vim da rua e para a rua regressei. Definitivamente.

Morri como vivi. Sem dar trabalho, silenciosamente, anonimamente, humildemente. Até a forma como fiquei era a forma como dormia e que tanto carinho provocava na minha família: de costas, de patinhas inferiores abertas, as superiores meio encolhidas e, apesar de ter mordido a língua, de expressão serena e de bebé.

Tinha dois anos.

2 comentários:

Ponto de Interrogação disse...

Absolutamente maravilhoso!

Consegui visualizar cada palavra, situação e sentimento.

Obrigada querido Luna!

E obrigada querida Vírgula!

Anónimo disse...

Lindo mas triste. Resta a consolação de saber que foi feliz junto da familia que o acolheu.Ficam as recordações e a saudade que vai existir sempre.
Da mana, um até sempre