sexta-feira, 30 de abril de 2010

Filha de Eva

Sei lá. Estava a almoçar, e vá-se lá saber porquê, lembrei-me do Mark Twain. Há razão? Claro que não. Contemporâneos ou não, existem p’raí marcianos que, num ápice, nos aumentam a temperatura. O que não é o caso do já dito, morto e enterrado.

Não é que interesse. Bom, pelo menos a mim não me interessa. Aplica-se-me o adágio de “quem feio ama, bonito lhe parece”.

Não sei. É aquela coisa… Cabeça que não pára. Tenho sido invadida por artigos, livros, conversas sobre a diferença entre homens e mulheres.

Estranho, de facto.

Pergunto: será que os especialistas conhecem o que, até agora, tenho percebido que é tão comummente desconhecido? Essa obra genial, “Excertos dos diários de Adão e Eva”? Está lá tanta coisa, tanto conhecimento, tanto entendimento, menos a receita para os desencantos. Mas, essa, também os peritos não no-la dão.

Só se fossemos seres integralmente racionais e nem cheirássemos emoções.

Importa saber que a discrepância tem causas genéticas? Quem tem mais ou menos neurónios? Que homens são descomplicados e que, para eles, quase tudo é sexo e que mulheres são complexas e amam de maneira diferente?

“Excertos…”. História do primeiro encontro da essência masculina e feminina. História da estranheza do outro. História do primeiro amor do mundo.

Adão, acomodado, ocioso, começa por ter uma imensa raiva daquele novo ser, tão diferente dele. Em vários domingos, apenas escreve: “Sobrevivi.”

Descansa e prefere ver Eva quieta e calada: "Seria um espectáculo repousante (...) até poderia sentir prazer em olhar para ela."

Eva, espontânea, menina, entusiasta, alegre e deslumbrada, não pára. Quer conhecer o que a rodeia, entender, dar sentido e significado às coisas, melhorar e embelezar o cenário em que vive.

Quem, filhas de Eva, não se revê?

É a primeira a ceder: "Não é pela esperteza que o amo, não é de certeza. (...) Ele é autodidacta e até conhece uma série de coisas ainda que elas não sejam como ele as vê (...) Se ele fosse dor, eu amá-lo-ia. Se ele fosse um destroço, eu amá-lo-ia (...) creio que o amo simplesmente porque ele é meu e é masculino." Predestinação feminina. “Eu amo-o com toda a força da minha natureza apaixonada e isto, creio, é próprio da minha juventude e do meu sexo”.

Não abandona o Paraíso por tentação. Apenas, e só, porque vê o seu Adão triste e desmotivado. Quer redimi-lo. Pretende oferecer-lhe a felicidade – talvez fora dos horizontes daquelas paragens.

Quem, filhas de Eva, não se revê?

Adão enviúva e a história de amor termina com um belíssimo epitáfio para a sua mulher: “Onde quer que ela estivesse era o Éden”.

Esquecera, há muito, o que sentira, pensara e escrevera: “Este novo ser de cabelo longo é um valente empecilho.”

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Ah, pois é... E então?

A jovem, decepcionada e carente, queixava-se.

- Os homens não prestam para nada. Hei-de ficar solteira a vida toda, vai ver.

A mãe, bracarense de gema, recorrendo, convicta e determinada, à sabedoria popular, não a deixou sem resposta.

- Filha, não te esqueças: cada tacho tem sempre uma tampa!

Ironizou.

- Oh, mãe, só pode estar a brincar comigo. E então aquela panela que não tem tampa porque não sabemos onde ela está metida?

Passaram vinte anos. A mãe morreu. A jovem transformou-se numa mulher de garra. Vive só - não encontrou companheiro.

Cozinha porque adora fazê-lo e a panela continua a existir e a ser utilizada.

A tampa, porém, mantém-se em local incerto.


sábado, 24 de abril de 2010

As palavras dos outros...

Estrela da Tarde

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto.


José Carlos Ary dos Santos


(Para uma Amiga, que tanto ama esta letra. Para que nunca te esqueças que nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto. Desejo muito que encontres o que procuras)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

... Interlúdio...




Céu de Santo Amaro
Maria Bethânia
Tempo

Olho para o céu
Tantas estrelas dizendo da imensidão
Do universo em nós
A força desse amor

Nos invadiu...

Com ela veio a paz, toda beleza de sentir

Que para sempre uma estrela vai dizer

Simplesmente amo você...


Meu amor...
Vou lhe dizer

Quero você

Com a alegria de um pássaro

Em busca de outro verão


Na noite do sertão
Meu coração só quer bater por ti

Eu me coloco em tuas mãos

Pra sentir todo o carinho que sonhei

Nós somos rainha e rei


De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Olho para o céu
Tantas estrelas dizendo da imensidão

Do universo em nós

A força desse amor nos invadiu...

Então...

Veio a certeza de amar você...


(Composição: Johann Sebastian Bach / Arranjo: Flávio Venturini / Letra: Caetano Veloso)

Para nós, Maria Bethânia é uma das maiores intérpretes de música ligeira. Aliás, foi ela que nos inspirou, com as palavras de Luíz Gonzaga, a apelidarmo-nos de Boiadeiras.

No “Céu de Santo Amaro”, Bethânia, que é uma apaixonada por poesia, escolheu os mais belos, conhecidos e ditos versos de Vinicius de Moraes: “Soneto de Fidelidade”. Dois génios.



sexta-feira, 16 de abril de 2010

O poder da lógica

Sentada ao lado direito do patriarca, aguardou que o prato lhe fosse posto à frente.

- Bô, a xôpa tem uma môca.

A mãe, convidada, engoliu a sua vertente doentiamente asséptica e torceu as mãos no colo, pensando: "minha rica filha".

- Não tem nada - disse o avô. - É salsa.

- Nhão é, nhão, Bô. É uma môca.

Com a colher, o avô empurrou o insecto, definitivamente afogado em creme de cenoura, para a beira do prato.

- É salsa! Pronto, assim já não comes.

- Oh, Bô. Mas é uma môca.

- Já te disse que é salsa!

A criança ficou calada durante uns segundos. O olhar recaía, vez sim, vez não, no prato e no seu opositor.

- 'Tá bem. É xalxa mas tem perninhas...

E foi assim, com sopa, moscas e mentiras, que surgiu a assertividade.

(...para ti, Ana, que tantas vezes tens sido uma segunda mãe para mim e raramente dou o valor...)

terça-feira, 13 de abril de 2010

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Carta aberta aos sapos…

(… em especial para os que não se revirem nela; muito provavelmente estas palavras são para eles…)

Parem! Deixem-se dessas coisas, caramba. Até me apetece bater o pé qual miúda pequena. Não há pachorra, bolas. Parecem atrasados mentais. E o pior é que gostam de o ser e pensam que não o são. Uns dão à sola e depois dizem que os afectos eram frágeis e vulneráveis. Mas o que é isto? Alguém me explica? Nem os próprios, claro – português da treta; melhor, palavras empandeiradas como quem fala com sérvios. Outros, que não aturam problemas emocionais alheios porque, neles, andam às voltas que nem cães bêbados. Outros ainda, porque não há tempo, têm uma vida muito agitada e com grandes responsabilidades sociais e, no fim, acabamos por descobrir que são impotentes e que têm um medo insano do fiasco do desempenho que nunca terão. Mas há mais: os que não deixam as mulheres porque, pobres, são esquizofrénicas, bipolares, têm unhas encravadas e não aguentariam viver sem o seu desamor ou porque a profissão, alegadamente religiosa, não lhes permite compromissos – namoros, só entre quatro paredes e no meio de grande sigilo; vimos a saber que há mais dez ou doze dilectas mas o que é isto comparado com as inconsistências do Vaticano...? –, ou os que não querem partilhar, porque não!, mas falam da separação, da mulher com cancro, da ex-namorada que lhes deu com os pés, do desemprego e da injustiça que é este mundo, da avó, das lambadas, das irmãs, da depressão, das amnésias temporárias, … Estes últimos são uns verdadeiros génios: descobriram o relacionamento unívoco.

Parem! Não se aguenta! Fogo.

Olhem, nada tenho contra a ficção – muito pelo contrário. Ler tem sido uma das minhas grandes paixões. Mas pode ser, de facto, um instrumento muito perigoso. Em especial, a literatura infantil. Nós, mulheres, crescemos a acreditar que, com um beijo, o sapo se transforma em príncipe. Ou seja, integramos que, por muito mal ou dessintónicas que as situações estejam entre duas pessoas, elas podem melhorar e que o outro se modifica por nós, lindas e irresistíveis princesas.

Pior de tudo: não nos prepara para encontrarmos um príncipe que, afinal, se revela um sapo! O mais frequente. No princípio, a sedução e a doçura e as palavras gentis. Depois, os grandes nadas: já não se levantam para cumprimentar, olham em volta antes de beijar, chamam-nos perturbadas porque lhes desejamos, em situações menos agradáveis, “boa sorte!”, dilatam o tempo entre os contactos. Até que se vão. Com explicação pouco esclarecida ou nem sequer. Ou então somos nós que, já não aguentando tanto desvairo, deslargamo-nos deles querendo clarificar o afastamento. Ah, ilusão pura e dura! Os homens, seres de Marte, só dão importância ao bidubidu: futebol, bejecas, quecas marcadas no cinto, ao seu próprio trabalho e ao seu próprio bem-estar. Qu'é lá isso, ó vénus desnorteadas e complicadas? Tristes - eles que nem sabem onde é o norte ou o sul, este ou oeste...

Ah! Permitam-me a imodéstia. Resta-me uma satisfação: tudo o que viram em mim, tudo o que ouviram de mim e tudo o que leram de mim corresponde exactamente ao que sou. O que deve ser surpreendente. Não creio que estejam habituados a honestidades, deles e dos outros.

Se ainda continuam a ler esta carta, chamo a atenção para um facto simples: não sou caso único – há muito boa gente que vive da verdade e na verdade.

Não param nunca para pensar no mal que fazem a estas mulheres? Não se importam? É uma questão de maneira de ser ou é uma questão adquirida? E se um dia lhes tocar a eles, aos sapos? Se um dia – imaginem – acreditarem no que uma mulher lhes diz e demonstra, se gostarem e se se prenderem a esse mimo e ela os abandonar sem palavra ou gesto? Será que perceberão que a vida lhes está a devolver o que têm dado e que não terão razões para se indignar com ela? Acredito que temos que ter a sabedoria suficiente para aprender e crescer com as experiências. Talvez se viverem e sentirem o que fazem viver e sentir, talvez aprendam a ser menos sapos, talvez aprendam a ser um pouquinho mais príncipes.

Deixo uma sugestão: agarrem nessa argúcia que consideram ter, vejam bem quem têm à frente e façam uma triagem. Escolham, como vítimas das palavras sem alma e da sedução de objectivo dúbio, uma mulher que seja uma rã.

Quanto às outras… Por favor, poupem-nas do vosso comportamento arbitrário. Por elas, por essas outras, caso não consigam nunca ser genuinamente civilizados, bem formados e decentes, peço-vos que não lhes liguem sequer. É que podem aumentar-lhes as fragilidades. E, apesar de tudo, não acredito que isso vos acrescente alguma coisa, ou que vos faça sentir mais másculos, ou ainda que vos torne mais realizados como predadores. Fazer mal nunca deu felicidade a ninguém.

Há atitudes que não se tomam porque nos caracterizam, porque nos definem e porque marcam o nosso caminho de forma irreparável. Acima de tudo, toda a palavra e todo o gesto negativos possuem a força e o poder de provocar uma reacção e têm um efeito de boomerang. E acabam por nos prejudicar muito mais a nós do que aos outros.

Fisicamente, tenho um grave problema de postura. Mas a coluna está cá, caros sapos: material e moralmente. E, comparando-me convosco, garanto-vos que é um privilégio pelo bem-estar que provoca, pelo facto de nos sentirmos gente.

Trazem, à nossa vida, assombro, decepção, desconfiança e tristeza.

Perceberão que vos estou a proporcionar motivos para reflectir e, reflectindo, crescer e melhorar?

Perceberão que tive o cuidado de evitar dizer o que sinto por vós?

Perceberão que o fiz por respeito? E perceberão o que isso é e porque razão esse respeito existe dentro de mim?

Perceberão que, apesar do desamparo que nos oferecem, estou a dar-vos um presente? Justamente a vós, que são eternos e irremediáveis batráquios?

Terão lido esta carta até aqui? E, se leram, compreenderão algum dia a morte lenta e intensa de uma mulher que beijou um príncipe que, de repente, se transformou num sapo?


Homenagem aos Pais...

Querido filho,

O dia em que este velho não for o mesmo, tem paciência e, por favor, compreende-me.

Quando deixar cair comida sobre a minha camisa e me esquecer como se apertam os sapatos, tem paciência comigo e lembra-te das horas que passei a ensinar-te a fazer as mesmas coisas.

Se, ao conversares comigo, eu repetir as mesmas histórias, que sabes como terminam, não me interrompas e ouve. Quando eras pequeno, para que dormisses, tive que te contar milhares de vezes a mesma história até que fechasses os olhinhos.

Quando estivermos reunidos e, sem querer, fizer as minhas necessidades, não fiques com vergonha. Compreende que não tenho culpa, pois já não as consigo controlar. Pensa nas vezes em que, pacientemente, mudei a tua roupa para que estivesses sempre limpinho e cheiroso.

Não ralhes se eu não quiser tomar banho. Sê paciente comigo. Lembra-te dos momentos em que te persegui e os mil pretextos que inventava para te convencer a tomar banho.

Quando vires a minha inutilidade e ignorância face às novas tecnologias que já não consigo entender, suplico-te que me dês o tempo necessário e que não me humilhes com um sorriso sarcástico.

Lembra-te de que fui eu quem te ensinou muitas coisas. Comer, vestir e enfrentar a vida tão bem como o fazes hoje. Não te esqueças de que tudo isto é resultado do meu esforço e da minha perseverança.

Se, por acaso, enquanto conversarmos, eu me esquecer do que estávamos a dizer, tem paciência e ajuda-me a lembrar. Talvez a única coisa importante para mim naquele momento seja o facto de te ver perto de mim, dando-me atenção, e não o assunto da conversa.

Se alguma vez eu não quiser comer, insiste com carinho. Assim, tal qual como fiz contigo. Compreende que, com o tempo, não terei dentes fortes nem agilidade para engolir.

E quando as minhas as pernas falharem por estarem cansadas, e eu já não conseguir equilibrar-me, dá-me a tua mão, com ternura, para me apoiar, como eu fiz quando tu começaste a caminhar com tuas perninhas tão frágeis.

E se algum dia me ouvires dizer que não já quero viver, não te aborreças comigo. Um dia entenderás que isto nada tem a ver com teu carinho ou com o quanto te amo. Compreende que é difícil ver a vida a abandonar lentamente o meu corpo, e que é duro admitir que já não tenho vigor para correr ao teu lado ou para te segurar nos meus braços, como dantes.

Sempre quis o melhor para ti e sempre me esforcei para que o teu mundo fosse mais confortável, mais belo, mais florido. E quando partir, podes estar certo de que construirei para ti outra rota noutro tempo, mas estarei sempre contigo e zelando por ti.

Não te sintas triste ou impotente por me ver assim. Não me olhes com cara de dó. Dá-me apenas o teu coração, compreende-me e apoia-me como fiz quando começaste a viver. Isso dar-me-á força e muita coragem.

Da mesma maneira que te acompanhei no início da tua jornada, peço-te que me acompanhes para terminar a minha.

Trata-me com amor e paciência e eu devolver-te-ei sorrisos e gratidão, com o imenso amor que sempre tive por ti.

Atenciosamente,

O teu Pai.

(Recebido por mail, desconhecendo-se a autoria. Adaptado do brasileiro.)

domingo, 11 de abril de 2010

... Interlúdio...



Pedro Abrunhosa
'Intimidade'
Ao vivo na Casa da Música


(... Pedro Abrunhosa empresta a voz a palavras de outros... 1ª série)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Desacertos 2

- Júlio?

- Olá, amiga. Que bom ouvir-te. Estás bem?

Que chatice. A tecnologia vai retirando a possibilidade de fazermos surpresas.

- Acho que sim. E tu?

- Achas...? O que se passa?

- Ah, nada de especial. A rotina de sempre. Acaba por desmotivar, não é?

- Pois é, tens razão. Sinto o mesmo. Então, o que é que queres?

Cada vez mais pragmáticos e incisivos. Que chatice.

- Precisava desesperadamente de ouvir uma voz amiga e afectuosa. Tenho tido alguns problemas e...

- Bom, nem me digas nada. Não imaginas o que tem sido a minha vida...

- É?

- Olha, estive internado, há um mês, com uma mononucleose. Ainda não me sinto bem mas já estou a trabalhar. Sabes como é...!? Não dá para estarmos de atestado. Mais a mais, a Clara está de novo desempregada...

- O quê?

- É verdade. Nem dá para acreditar, não é? Tive que ‘cortar’ numa série de coisas. O que mais me custa é não poder dar aos miúdos a qualidade de vida a que estavam habituados...

- Meu Deus... Não há nada que não te aconteça, rapaz.

- Ah, mas isto é só uma pequena parte.

- Uma pequena parte...?

Falou-me da insuficiência cardíaca da mãe, do AVC do sogro e do cancro do pâncreas que descobriram na sogra. Com tamanha disfunção, as crianças ficaram com problemas comportamentais – todas na pedopsiquiatria. Uma, com perturbações do sono, outra, com incontinência urinária e, a terceira, com tiques estranhíssimos que “nos dão cabo dos nervos”.

- Acabo por andar aos berros o tempo em que estou em casa. A Clara... bom, completamente insuportável. Claro que já estamos com problemas no nosso casamento.

- Querido, nem sei o que dizer... Mas como é que é possível?

- Não sei. Não sei. E tu? O que é que me querias dizer?

- Nada, amigo, absolutamente nada. Não te esqueças: se precisares de alguma coisa, estou aqui. Mas, olha, no meio disto tudo, como é que te estás a aguentar?

- Só me apetece dar um tiro nos cornos...

- Júlio, por amor de Deus, isso resolvia o quê?

Atropela-me.

- ... Não tenho paciência para nada. Ora desatino, ora choro. Sinto-me com o mundo às costas. E o meu médico a querer dar-me antidepressivos, vê lá tu.

- E então? Qual é o problema?

- Qual é o problema? – grita. – Eu sou mais forte que qualquer comprimido ou não me conheces?

- Ah, claro.

Despedimo-nos assim que consegui.

Sentei-me, extenuada. Perante tantos problemas e necessidade de partilha nada havia para dizer.

Afinal, eu apenas tinha nas mãos e na alma a sentença de seis meses de vida.


Mas, afinal, o que é que é isto, Amélia?

Deu-me para isto, que se há-de fazer? Procurar nomes de amigos e conhecidos na net. Nada de especial nem por motivo nenhum. Curiosidade infantil.

Até o meu analisei.

Referida, mais do que uma vez, num blogue de um utente dos meus tempos da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. O contacto era feito por e-mail ou pelo telefone. Viemos a conhecer-nos. Mal-entendidos resolvidos mas o texto continuou lá. Tudo bem.

(Engraçado: uma pessoa que não conhecia entrou em juízos de valor completamente desadequados; da primeira vez que esteve comigo, esclarecemo-nos e o discurso virou. Outros, que supostamente me conhecem, não querem nem ouvir falar de explicações. Ai, o ser humano…)

Eis que, de repente, o encontro. Não sei se está morto ou vivo e os assuntos não revelam a dúvida. Críticas a livros publicados. Uma fotografia que, segundo me parece, deve ter bastante tempo… e pouco mais.

Há muitos anos atrás, mataram-no antes do tempo. Movi céus e terra para saber a verdade até que, um dia, recebi um telefonema: “Olá, daqui fala o morto…”.

Explico por que quis saber. A mágoa era tanta que, acreditando eu na vida após a morte, não poderia, caso tivesse morrido, continuar a sentir o que sentia. Não seria justo, em meu entender, o ressentimento que tinha porque em nada o ajudaria na sua caminhada. Teria que resolver o assunto – a bem ou a mal.

Hoje, a recordação é-me indiferente.

Ele sempre pensou que morreria cedo. O pai, pessoa bem formada e introvertida, características que o filho não herdou de todo (nem aquela altura enorme, tão-pouco o ar de Humphrey Bogart. Igual à mãe, com feições muito judaicas), teve várias tromboses. A primeira aos 53 anos que o deixou acamado até ao fim.

Acabei por pensar o mesmo. Não pelas mesmas razões, mas porque ele é tão diabolicamente emotivo e intenso que nunca acreditei que qualquer coração aguentasse, durante muito tempo, tantas tempestades.

Bom, caso esteja vivo, tem 75 anos. E certamente enxertado em corno de cabra.

De qualquer forma, paz à (na) sua alma.

Prometo que darei cabo desta curiosidade de saber se tenho conhecidos internéticos. Até os zés-ninguéns, como eu, aparecem como figuras de primeira…

Que chachada!


quinta-feira, 8 de abril de 2010

... Interlúdio...



You're Not From Here
Lara Fabian


I don't know what is going on
You turn around and touch my heart
A silent moment speaks the truth

Something has happened all at once

It should have scared me in advance

But I was falling in those eyes of yours

And so

Fear was gone

I knew there was nothing else

I'd ever want


I know you

You're not from here

I've waited for you to appear

To take my breath away

And make me weep

You're not from here

Not from this here and now

Just a touch of yours

And I fly... and I fly... and I fly


I can't get used to missing you

If this is how it's gotta be

I need an angel to watch over me

No one can hold the hands of time

But I can hold you in my mind

Over and over like a melody

For now

I'll stand still

For now

I'll be filled by the memory of your skin


I know you

You're not from here

You don't belong to lies and tears

The greatness of your soul

Makes me weep

You're not from here

Not from this here and now

Just a touch of yours

And I fly... and I fly... and I fly


Tudo depende da posição...

Fazê-lo parado fortalece a coluna; de barriga para baixo estimula a circulação do sangue; de barriga para cima é mais agradável; fazê-lo sozinho é enriquecedor, mas egoísta; em grupo pode ser divertido; no W.C. é muito digestivo; no automóvel pode ser perigoso…

Fazê-lo com frequência desenvolve a imaginação; a dois, enriquece o conhecimento; de joelhos, torna-se doloroso…

Enfim... sobre a mesa ou sobre a secretária, antes de comer ou à sobremesa, sobre a cama ou numa rede, despidos ou vestidos, na relva ou sobre o tapete, com música ou em silêncio, entre lençóis ou no roupeiro:

Fazê-lo é sempre um acto de amor e de enriquecimento.

Não importa a idade, nem a raça, nem o credo, nem o sexo, nem a posição económica....

O que importa é que…

Ler é um prazer!!!

(Recebi por um mail enviado pela minha irmã mas desconheço a autoria.)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Porquê?

Isto de estarmos vivos é muito complicado, já dizia o poeta e escritor Manuel da Fonseca.

Interrogo-me sobre o porquê desta verdade.

Será que a vida é complicada? Ou seremos nós? Ou ambos?

Resolvi fazer jus ao meu nome: Ponto de Interrogação. De facto, só quando a Vírgula e eu demos à luz este abençoado blogue, percebi que sou gente de muitas interrogações. Porquê? Porquê? Porquê? – pergunta a minha vertente infantil. Para quê? Para quê? Para quê? – pergunta a minha faceta de gente crescida.

A minha complicação começa logo aqui: na palavra ‘complicado’. Considero-me uma pessoa de conceitos. Dou uma importância primordial às palavras. Há coisas que digo apenas a algumas pessoas e que meço ao milímetro pois, numa palavra aparentemente simples, há, para mim e a partir do momento em que a profiro, um universo de sentimentos que vêm directamente - sem passar pela casa de partida - do meu coração, da minha alma, das minhas entranhas. Não tenho o hábito de ‘esbanjar’ sentimentos, emoções e – lá está – palavras. Só digo mesmo o que sinto quando sinto. Quando gosto, gosto e quando não gosto, não gosto e isso dá-me alguns dissabores. O que quero dizer é que não faço favores a ninguém e, bem ou mal, sou o mais transparente possível.

O que significa, por isso e para mim, ser(-se) ‘complicado’? Engraçado… Não tenho a certeza de como responder a esta questão. É-me mais fácil recorrer ao que a despoletou.

Estou a falar do relacionamento entre seres humanos. Porque se observarmos a natureza e o seu curso percebemos que, apesar da complexidade que é imputada a cada ser vivo e às teias que tecem cada uma dessas existências tão significativas, existe uma simplicidade maravilhosa, por vezes enfadonha mas sempre renovável.

Pergunto-me, então, porque é que o relacionamento entre seres alegadamente racionais é tão complicado? É óbvio que cada um de nós é único. Mas temos parecenças e a capacidade inata – à semelhança de tudo o que é vivo - de nos adaptar e moldar. Há, no entanto, algo que nos separa dos outros seres: o facto de todos nós, sem excepção, almejarmos alcançar um estado de amor puro e divino. A nossa necessidade de dar mas também de receber afecto, carinho, ternura. Na verdade, sou até capaz de acreditar que as maiores atrocidades que o ser humano comete são, para além de outras coisas, derivadas da ausência de amor – amor-próprio e amor pelos outros. Somos capazes de envidar esforços para ‘amar’ quem sabemos não merecer da nossa parte a mínima consideração, mas não o fazemos por aqueles que, não só apresentam vertentes que se encaixam perfeitamente nos nossos valores e princípios, como manifestam a sua disponibilidade e a sua presença e, sobretudo, a sua capacidade de amar.

Não me quero alongar. Ficará para segundas núpcias. Lamento profundamente que, sendo o que todos nós andamos à procura, estejamos tão distantes uns dos outros por questões meramente secundárias e, em muitos casos, fúteis e mediáticas. Passamos a maior parte do nosso tempo a ver a vida a passar-nos ao lado e a escorregar-nos por entre as mãos quando, afinal, é libertador e renovador dizer, por palavras e/ou gestos, amo-te! a um familiar, amigo, companheiro, amante, irmão…

terça-feira, 6 de abril de 2010

... Interlúdio...

... porque acredito que todos nós precisamos de partilhar(s)...
Às vezes penso que é, na verdade, assim que enriquecemos...




The Story
Brandi Carlile

All of these lines across my face
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true...I was made for you

I climbed across the mountain tops
Swam all across the ocean blue
I crossed all the lines and I broke all the rules
But baby I broke them all for you
Because even when I was flat broke
You made me feel like a million bucks
Yeah you do and I was made for you

You see the smile that's on my mouth
Is hiding the words that don't come out
And all of my friends who think that I'm blessed
They don't know my head is a mess
No, they don't know who I really am
And they don't know what I've been through like you do
And I was made for you...

All of these lines across my face
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true...I was made for you

Oh yeah, it's true... I was made for you.


Desafio cumprido!

Estava aqui a tentar escrever um textozito, quando senti uma necessidade obviamente fisiológica mas aflitiva de ir à casa de banho. Fui a correr e, assim que cheguei à porta das duas casas de banho colectivas do meu local de trabalho, eis que desatei imediatamente a resmungar mentalmente com a minha bexiga:

– Tinha que te dar vontade logo agora! Porque não antes do almoço? Agora já a malta comeu e veio despejar os intestinos!

Entrei e pensei:

– Bem… vou deixar de respirar enquanto mijo.

Mas depois percebi que, com a quantidade de água que tinha para verter, morria sem ar, antes de chegar ao fim.

Então recorri ao plano B:

– Vais respirar só pela boca!

E então lembrei-me que a toxicidade daquele ar era tão imensa que, se o fizesse, dois segundos depois já tinha morrido intoxicada ou saía de lá com uma taxa de radiação tão grande, que quando chegasse ao gabinete pensariam que os canos tinham rebentado e que a merda já chegava ali.

Quando dei por mim, já estava a lavar as mãos – graças a Deus! Ainda pensei que iria ficar com o cabelo a cheirar… àquilo, mas fui mais rápida que a velocidade da luz.

Respirei de alívio sem sequer me engasgar. Consegui sobreviver ao difícil e árduo desafio de ir a uma casa-de-banho semi-pública, com a maior das diplomacias.

Lembrei-me que, nisto, somos todos iguais. Ufa...!

Desacertos

- Olá, João, como vais?
- Ah. Olá. Tudo bem? Há muito tempo que não sabia nada de ti. O que é feito?
- Pois, foi por isso que te telefonei: quero dizer-te que gosto imenso de ti e que tenho montes de saudades tuas.
Silêncio.
- Estou? – pergunto.
Nada.
- Sim? – insisto.
Mas que raio se passa? A chamada foi abaixo?
- João? – pergunto, num tom mais elevado.
- Hããã… Ah. Sim. Que é?
- O que é que se passou?
- Nada. Estava a pensar. Está tudo bem contigo?
- Claro. Só quero que saibas que te adoro e que sinto muito a tua falta.
- Ah...ah. Pois… Eu tam…bém.
Silêncio de novo.
- Mau! Que raio se passa contigo, João?
A voz sai sumida, cautelosa, quase a medo.
- Olha lá, tens-te esquecido de tomar as gotas?

A propósito de ti,

Há pessoas 'estrelas' e há pessoas 'cometas'.
Os cometas passam...
São lembrados apenas pelas datas
em que aparecem e desaparecem.

As estrelas permanecem.
Há muita gente 'cometa'.
Passam pela vida apenas por instantes.
Gente que não se prende a ninguém
e que a ninguém se prende.

O importante é ser estrela!
Permanecer, ser calor, ser vida!
Ser Amigo é ser estrela.
Os anos passam mas as marcas ficam no coração.
Ser cometa é não ser amigo.
É ser companheiro por instantes.
A solidão é resultado de uma vida 'cometa'.
Ninguém fica. Todos passam.

Há necessidade de se criar um mundo de estrelas.
De todos os dias poder senti-las.
De todos os dias ver a sua luz e sentir o seu calor.
Assim são os amigos na nossa vida.

Podemos contar com eles.
São coragem nos momentos difíceis.
São luz nos momentos de escuridão.
Ser estrela nesta passagem que é a vida,
neste mundo de cometas... é um desafio!
Mas, acima de tudo, é uma recompensa!
É nascer e viver. E não apenas existir!

(Adaptado de um texto anónimo)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

... Interlúdio...

… quanto a mim, o momento mágico e único de Pedro Abrunhosa…



Será
Pedro Abrunhosa
Ao vivo na Casa da Música


Demito-me!

Hoje é um daqueles dias que persiste em fazer ecoar o som da chuva e do vento na minha cabeça. Um daqueles dias que me faz reflectir e perscrutar sobre os meus próprios vendavais e bonanças.
Dou por mim com uma infindável monção de pensamentos que insistem, fervorosamente, em alagar o meu coração e marejar os meus olhos de lágrimas.
É então que questiono sobre o que me leva, realmente, a estar assim.
Inspiro. Olho para o vazio e sinto que este é, na verdade, um misto de tudo e nada. Um turbilhão de coisas que, de tão numerosas, teimam em anular-se reciprocamente. Culpa minha. O racional e o emotivo em luta constante por um pedaço de atenção permanente.
Fecho os olhos e tento ver o reflexo de mim mesma. O reflexo do que sou, do que represento para o mundo e para mim mesma. Inspiro, uma vez mais. O ar está tão carregado que é como se eu sufocasse nos meus próprios pensamentos. Os sentimentos, recalco-os. Quando, de repente, me sinto despertar por uma tempestade de emoções que, embora conhecendo-as, investem sempre como se fosse a primeira vez.
Dou por mim a gritar silenciosamente por apenas um minuto de eterna serenidade, até que, inesperadamente, ele chega. E, com ele, chegam também sessenta segundos de bonança. Aquela que permite, numa fracção de tempo, renovar.
Rejuvenesço, então, os meus pensamentos. Deponho a esperança, o lirismo e a utopia que me caracterizam, num depósito de reciclagem que guardo secretamente dentro de mim e a que recorro quase sempre instintivamente, em períodos de carência afectiva. Faz-me lembrar que, por alguma razão, existo.
Passados sessenta segundos, nova enchente. Desta vez vem acompanhada de detritos que trazem, com eles, imagens vívidas de memórias, realidades e desesperança. Penso na humanidade e, consequentemente, penso em mim mesma.
Recordo a infância que praticamente esqueci. A adolescência que não vivi. A marginalização de mim mesma. A solidão. Recordo, até, a minha inexistência até há relativamente pouco tempo. O que não fui. O que não me permiti ser. E o que sou.
Recordo a ilusão de duas mãos dadas. De momentos de carinho que, por mais fugazes que fossem, na realidade nunca existiram. A ilusão é isso mesmo. A esperança irrealizável. Uma quimera. Aquilo que eu pensava ser a fusão de dois corpos era, afinal, a cisão. A unicidade daquela relação estava, apenas e só, na minha cabeça. Também... o que é que eu podia esperar de uma diferença de trinta e dois anos de existência? Quem era eu? Ou, por outro lado, quem era ele?
Nova bonança, novo fôlego, nova renovação. Que retirei eu desta experiência? Apesar de todas as dificuldades e cicatrizes que tardam em sarar, a capacidade de ser gente. A capacidade de perceber que existe em mim uma imensa capacidade de amar. De dar. E de receber. Resta-me aprender a fazê-lo.
Embora eu não o percebesse na altura, a vida tem-me oferecido presentes maravilhosos.
Novo influxo. Desta vez, dou por mim a pensar-me como parte de um todo. Agora, a devastação interior é maior. A minha cabeça parece uma torrente de incessantes e ensurdecedoras emoções e raciocínios.
Penso, revoltada, porque raio havemos nós de ser tão complexos? Porque é que calamos, silenciamos, agredimos, abdicamos, fugimos e, no fundo, receamos as melhores coisas e, por outro lado, aceitamos tão complacente e resignadamente o pior da vida? O pior de nós? Será por pensarmos que não temos outra escolha? Que a única alternativa é esperar pelo bom e suportar o que já é mau?
Diz-se que só aprendemos a dar valor ao que perdemos. Então e se soubermos dar valor ao que não temos nem nunca tivemos? Ou se, por outro lado, soubermos dar valor ao que já temos?
Nova e última bonança. Para já...
Afago os olhos. Limpo as lágrimas. Inspiro. Desta vez sinto o ar mais leve. Recorro à reciclagem. Àquele pedaço de mim mesma que é única e exclusivamente meu.
Agradeço a Deus, à vida e a mim mesma pelas pessoas que conheci. Pelas que conheço. Pelo bom e pelo mau. Por me darem a capacidade de crescer e de querer ser gente. Por me permitirem sussurrar a importância de mim mesma. Uma importância por descobrir, é certo. Mas à descoberta.
No oceano que sou, vejo o reflexo de mim mesma. E é então que acredito. Acredito na bondade humana. Acredito no amor. Acredito na luz. Acredito no acreditar e, acima de tudo, permito-me, em fracções de tempo, efectivar a renovação e acreditação de mim mesma.
Demito-me da pessoa que sou e entrego-me à pessoa que quero ser com a consciência de que a vida é um fluxo de tempestades e bonanças.
É o que desejo para mim. É o que desejo para o mundo.

domingo, 4 de abril de 2010

Palavras sem direcção…

Domingo de Páscoa – o dia em que Deus voltou a sorrir…

Mais um acto de loucura que, desta vez, começa assim:

Acordei às 4:22h, agarrei no mp3 e estive a ouvir o Cohen. Antes das 6h, levantei-me de mansinho para dar azo ao meu vício mais estúpido: fumar – numa janela do outro lado da casa. Quis ver as estrelas, mas a única luz natural era a de uma lua triste e embaciada.

Tem razão quem o afirma – sou uma lutadora. À minha própria maneira.

(embora, para o meu gosto, tenha vulnerabilidades insuportáveis.)

Aliás, diz quem disso percebe que, dadas as minhas vivências e inexistências, teria sido possível eu cair, cedo, num de dois limites: ser completamente loira ou psicótica. Asseguram-me que a minha resistência e capacidade de renovação me salvaram. Eu, cá por mim, coisa ignorante e insatisfeita, acho que houve uma imensa dose de sorte. Ou de azar – não me importava nada de funcionar apenas com um neurónio e de caminhar com um sorriso cretino.

A imbecilidade impede as inquietações e tem uma vaga ideia das mágoas.

O meu percurso fugiu ao modelo habitual. Começou logo desde o início – nasci de rabo. A minha passagem para o mundo foi dolorosa para a minha mãe e, imagino, também para mim. Esta originalidade deve ter-me provocado uma estranheza aflita. Estive 24 horas de pernas para o ar. O meu pai, quando me viu, teve um baque. E, enquanto não lhe disseram, garantiram, juraram que seria provisório, convenceu-se de que eu passaria o resto da vida com os pés apontados para o céu…

Sou quieta e solitária. Por força de ausências presentes – repetitivas, constantes -, acabei por achar que era assim mesmo, um padrão do meu percurso, e fiz do isolamento uma opção. Um bocado aquela coisa: antes estar só, mesmo contrariada e mal, do que acompanhada e desamparada. Desta forma, não há o problema das expectativas e sabe-se com o que se conta. Bom, mais ou menos…

Editarei estas pequenas confissões e opiniões?

(Qual o sentido de tudo isto? Enviá-las-ei directamente para a reciclagem? Ou serão motivo de escárnio e mal-dizer? Ou, pelo contrário, terei um(a) leitor(a)/ouvinte atento(a), disponível e compreensivo(a)? Ou nada disto?)

Sabê-lo-ei alguma vez? Se forem parar ao blogue, não cortarei uma vírgula (eu) sequer. Sou genuína. Destemida, louca, imprudente, confiante, imprevisível – e o contrário também. Ambivalente.

Depois de uma semana de tempo incerto, agora o sol brilha.

Eu tenho uma Amiga...



Eu tenho uma Amiga que, entre pontos e vírgulas, faz de cada parágrafo da vida uma exclamação! Assim - tal e qual.
Eu tenho uma Amiga que, entre outros, nasceu com o dom da palavra escrita, falada, sussurrada, silenciada e ouvida.
Eu tenho uma Amiga que, por mais adjectivos ou parábolas que encontremos, é difícil de definir. Aliás, tudo o que é inédito, único e especial, é difícil de definir.
É tudo menos uma pessoa reticente. As pontuações são, de facto, com ela. Fazem parte da sua essência. Se pudesse defini-la em termos literários, diria que é uma obra-prima da literatura. Na verdade, seria, literariamente falando, uma obra de um só exemplar, com um misto de fábula, romance, drama, comédia e poesia, e é isso que a torna tão especial.
É um ser cuja leitura nos aproxima de nós - dos que sabem ler, claro!, mas também interpretar. Há quem não tenha sensibilidade, o que - tenho vindo a perceber - é algo cada vez mais patente hoje em dia. O analfabetismo, emotivo e humano, impera.
Eu tenho uma Amiga... Alguém cuja existência faz, de si própria, um dicionário de sinónimos com definições que reproduzem, eficaz e fielmente e num toque quase poético, características como a generosidade, a transparência, a sensibilidade, a amizade, o amor, a ternura e doçura, a coragem, força e determinação e, entre outras e mais importante, a dimensão humana - essa capacidade inexoravelmente rara de estarmos mais próximos do ser que Deus criou à Sua imagem. Benditos os que a VÊEM. Pobres dos que a deixam passar ao lado.
Eu tenho uma Amiga... Que não é nada de especial a não ser a confiança que deposito num ser humano. Com virtudes e defeitos - graças a Deus! Mas existe. E essa é uma verdade incomensurável que me faz acreditar no melhor que cada um de nós pode ser. É por isso que escrevo hoje e aqui. Porque ao conhecê-la me permiti conhecer - o pior mas também o melhor de mim. Não fosse a honestidade dela e continuaria, eventualmente, dentro de mim própria mas longe da pessoa que descobri ser e que quero ser.
Eu tenho uma Vírgula na minha vida que mudou o sentido da minha existência. Ajudou-me a equilibrar e a encontrar-me. Eu tenho uma Vírgula na minha vida que está sempre presente. É, por isso, a minha melhor Amiga. A minha Amiga! Obrigada por existires!

... Interlúdio...


Je Suis Malade
Interpretação de Lara Fabian
Alice Dona / Serge Lama

sábado, 3 de abril de 2010

3 de Abril?

Hoje, dia 3 de Abril, não existe.

Esta é a minha vontade.

Fonte de memórias doridas durante vidas, afastei-o do calendário e de mim.

Dia do nascimento do meu verdugo foi também – porquê…? – o dia do início de um percurso, de um casamento, de um divórcio.

Não, não o quero. Do dia 2 de Abril passo directamente para o dia 4 de Abril e que se lixem os fundamentalistas do tempo e os seguidores de logros.

É uma noite sem estrelas, sem sonhos ou crenças. O nada. Anteriormente o tudo que fazia sangrar, com a dor de quem me abre as costelas sem anestesia.

Hoje, dia 3 de Abril, não existe. É esta a minha vontade.

A minha mãe?

A pergunta, temida e com um alto grau de perigosidade, surgiu do nada da boca da criança de 4 anos:
- A minha mãe?
Estremeci: ora, muito bem, aqui vamos nós…
- Está na escolinha a estudar inglês. Já está mesmo, mesmo a chegar – proactividade em acção.
- A minha mãe?
Revirei os olhos. Já sabia. O som saíra estridente.
- Gonçalo, querido, sabes que ela vem já…
- Quero a minha mãe! – gritou.
Toquei-lhe.
- Olha, não faças barulho para ouvirmos a campainha, está bem? Oh, o elevador em acção. Será ela?
Ambos sabíamos que não.
A ladainha continuou.
- Quero a minha mãe! Quero a minha mãe! Quero a minha mãe!
- Eu sei e falta pouquinho tempo para ela estar aqui connosco. Anda cá, à madrinha.
- Nãããoooo! Não gosto de ti.
- Gostas, sim, senhor. Vem. Eu dou-te beijinhos e conto-te uma historinha.
- Não quero! Não gosto de ti.
Começou a andar à roda da mesa da sala, braços caídos, expressão carrancuda e choro sem lágrimas.
- Não gosto de ti! Não gosto de ti! Ããããããããããããã…
De repente, mudou o azimute e começou a percorrer a casa, mantendo a prece. Eu atrás dele.
- Gonçalo, queres uma bolachinha?
- Não!!! Ããããããããããããã…
- Água ou sumo?
- Não!!! Ããããããããããããã…
Com a cabeça a mil.
- E chichi? Queres fazer?
- Não!!! Ããããããããããããã… Não gosto de ti e quero a minha mãe!
Lágrimas grossas começaram a cair e, ajoelhando-me, pus firmeza na voz.
- Gonçalo, estou a ser má para ti? Não estou, pois não? Podes fazer o quiseres. Não vale a pena chorar, não achas?
- Ããããããããããããã… Quero a minha mãe.
- Muito bem. Tens a casa por tua conta. Se precisares de alguma coisa, estou aqui mas não continuo a falar contigo. Vou para a sala.
As posições inverteram-se: veio atrás de mim.
Sentei-me no sofá e os meus níveis de ansiedade atingiram gravemente o nível encarnado. O telefone tocou e quase comecei a gritar pela MINHA MÃE. Difícil perceber quem era. Não ouvia nada com a barulheira que vinha da porta. Conversa curta. A tia Ilda percebeu que eu estava em campo de batalha.
De repente, num choro imenso, e no meio de fungadelas:
- Quero fazer cocó!
Estúpida, a única coisa de que me esquecera! Levantei-me de um salto e, dando-lhe a mão, disse-lhe:
- Ai, que coisa tão boínha. Vá, vamos depressa.
Corremos para a casa de banho. Vertiginosamente, tirei-lhe a roupa, sentei-o na sanita e deparei-me com o inimaginável: quilos de porcaria nas cuecas e nas calças. Esqueci-me do auto-controlo.
-Valha-me Deus! Nem acredito nisto!
A aflição atingiu-o em cheio e o muro começou a cair.
- Ajudas-me? Tiras-me isto? Lavas-me?
Esqueci o cenário, agarrei-lhe na carinha e dei-lhe mil beijos.
- Claro que sim, Gonças. Não há problema nenhum. A madrinha vai limpar-te mas tens que me ajudar. Deixas de chorar, querido?
Continuei a falar com ele já em tom de galhofa enquanto, afanosamente, andava a correr de casa de banho para casa de banho, ligava o esquentador e limpava a sujidade. Sem me esquecer de ir brincando com ele.
- Vou ficar limpinho, madinha?
- Então, não? Claro que sim. Achas que te deixava ficar sujo? Vamos tomar uma graaaande banhoca.
A campainha tocou.
- Olha, a mãe chegou.
Nem quis saber. Deixou-me pô-lo na banheira enquanto eu contava as nossas desventuras ao ser mais desejado até há uns minutos atrás.
Ajoelhei-me, agarrei numa manápula, enchi-a de gel, não sem antes ligar o chuveiro.
- Não faça isso – disse-me a mãe. - Ele tem medo e vai começar a fugir e a chorar.
- Por favor, deixe-o comigo e não diga nada – pedi-lhe, tranquila.
Ele pôs-me as mãozinhas nos ombros, falava sem parar e ria.
A mãe, estupefacta, sussurrava.
- Ele nunca me deixa fazer-lhe isto…
Lavei-o, limpei-o e arranjei roupa de adulto – a única que havia em casa. Tudo no meio de gargalhadas.
Quando saíram, fechei a porta e empurrei-a com as mãos abertas e a cabeça baixa. Suspirei.
Amava-o profundamente mas era tão reconfortante voltar para o meu espaço e para o meu silêncio.
Quando comecei a tomar conta do Gonçalo três vezes por semana, a mãe encheu-me de recomendações. Recordo uma:
- Não se preocupe porque ele só faz cocó antes de se deitar. Por isso, nem vale a pena trazer bacio.
Em todos os outros dias, cerca de cinco a dez minutos depois de chegar a minha casa, dizia-me:
- Madinha, quero fazer cocó!
Claro que o bacio teve que entrar rapidamente porta dentro.
A partir de então, fiquei com a certeza de que tinha, nos outros, um efeito laxante.