quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Testemunho de amor e sobrevivência em quatro patas...

Vou tentar contar-vos uma história na primeira pessoa. Não sei se curta se longa. As palavras definirão a sua extensão.

Nasci há cerca de onze anos. Não vou entrar em grandes pormenores sobre os primeiros meses da minha vida porque precisei de demasiado tempo para os tentar esquecer (e consegui) e pretendo que este seja um testemunho positivo e optimista. No entanto, considero importante salientar que esse período condicionou, para sempre, a minha própria existência. Fui muito maltratada – agredida por tudo e por nada, passei fome e, por fim, já nem me recordo se num momento de desespero fugi ou se fui abandonada.

Durante esse período, que para mim foi uma eternidade, integrei demasiados traumas que se revelavam impossíveis de ultrapassar. Penso que sempre fui uma sobrevivente (ouvi dizê-lo muitas vezes a meu respeito, por isso deve ser verdade) e nunca fui de me queixar. A única coisa que nós desejamos é encontrar alguém que nos trate bem e a quem possamos dedicar-nos de alma e coração. Eu não fugia à regra.

Lembro-me que foi num fim-de-semana. Andava a vaguear perdida, esfomeada e muito, muito assustada. Até que vi um ser com ar amigável junto de um outro semelhante a mim, felpudo e com um ar muito feliz. Iam a entrar para um carro. Brrr! Sempre tive medo de carros. Naquele preciso momento um impulso maior que eu fez-me correr e entrar porta dentro. Ainda me puseram fora do carro mas o meu instinto resolveu gritar mais alto e repeti a proeza. Foi a melhor coisa que fiz na minha vida, já que aquele gesto modificou radicalmente a minha vivência e me salvou!

Em poucos minutos cheguei a uma casa onde fui recebida, embora de forma surpreendida, com muito carinho e abertura por aquela que viria a ser o meu anjo da guarda. Senti, pelo cheiro, que já ali tinham estado outros seres como eu. E o ‘felpudo’ também pertencia àquele espaço, o que me tranquilizou. Percebi, mais tarde, que o chamavam carinhosamente por Broncas. Como não sabia o que me iam fazer procurei o primeiro sítio para me deitar tranquilamente de forma a que pudessem ver que era sossegadinha e bem comportada. Não sei o que fiz mas a humana mais jovem disse logo, assim que me viu deitada no sofá encostada às almofadas e semi-encolhida: - Olha! É uma verdadeira lady! A posição dela, tão engraçada…

Senti alguma relutância. Penso que tinham perdido um amigo há relativamente pouco tempo e não sabiam o que haviam de fazer-me. Ainda nesse fim-de-semana tiraram-me algumas fotografias que utilizaram para dizerem ao mundo que me tinham encontrado, caso os meus anteriores humanos quisessem vir buscar-me. Desejei, com todas as minhas forças, que ninguém me reclamasse. E, ao fim de alguns dias, também já os meus novos humanos o desejavam. Até se informaram sobre os seus direitos. Felizmente, a vida ou o destino aclamou-me para eles.

Cedo se aperceberam que eu vivia apavorada com o que, eventualmente, me pudesse acontecer. Fazia-me muita confusão o barulho ou gestos mais bruscos a ponto de me render totalmente deitando-me de barriga para cima e ganindo como se revivesse, naqueles momentos, o que passei nos primeiros meses de que vos falei. Nas primeiras vezes, os meus queridos humanos ficavam atónitos e pensavam que me estava a acontecer alguma coisa. Depois acabaram por perceber a que se devia e tentaram ter mais cuidado.

Lembro-me particularmente do sentimento complacente e cúmplice do meu humano alfa no primeiro dia em que, ao despir-se, o vi tirar o cinto das calças. Entrei de tal forma em pânico que, de fora, pareceria que me estavam a matar. Aprendi, depois, que em circunstâncias normais era apenas um adereço que eles usam para segurar as peças de roupa e não para bater em quem quer que seja.

Levei muito tempo até aprender que podia fazer as necessidades na rua sem que alguém ralhasse comigo; que não precisava de comer às escondidas; que tinha o direito de pedir e fazer festas pois faz parte do que é expectável de nós; aprendi até o que era uma bola já que nunca tinha visto nenhuma nem sabia o que fazer com ela. Isso aprendi com o Broncas – o meu melhor e único amigo da minha espécie. Porque também sempre tive muito medo dos outros cães.

Uma característica minha é a capacidade de ladrar quase incessantemente. Confesso que por vezes se pode tornar desagradável mas não conheço outra forma de me exprimir pelas condicionantes que já referi. Por outro lado e, curiosamente, nunca fui capaz de aprender a uivar, ao contrário do Broncas que até a dormir o faz… E é tão engraçado. Parece que está a ladrar e a cantar o ‘atira o pau ao gato’ ao mesmo tempo: “Auuuuuuuuuuuuuauauauauauauauuuuuu”… É mais ou menos assim - temos aqui um vídeo para vocês verem -. Eu, por outro lado, sou perita em ladrar e comer ao mesmo tempo e os meus humanos riem-se muito. Por falar em comer é o que mais gosto de fazer, juntamente com a atenção e cuidados da minha humana-mãe. É uma cuidadora nata e a ela tudo devo. Adoro todos os meus humanos mas foi ela a única em quem consegui depositar toda a minha confiança.

Talvez ainda não tenham percebido mas à data em que escrevo estas palavras já não estou cá. Faço-o porque continuo, agora e sempre, a existir nos corações daqueles que me acolheram, trataram e acarinharam de alma e coração e a quem retribuí como soube. Faço-o porque, de certa forma, continuarei a existir eternamente noutro plano e é isso que me faz depositar estas palavras pelas mãos da minha humana mais jovem.

Foram onze anos de vida plena. A saúde não nos favoreceu muito – a mim e ao Broncas – mas a dedicação dos nossos companheiros fez-nos lutar pelo tempo que ainda tínhamos. Há dois anos diagnosticaram-me com Diabetes Mellitus e, desde então, passei a tomar injecções de insulina duas vezes por dia que o meu anjo da guarda me administrava sempre com todo o cuidado. Passei de 22 a 8 quilos uma vez que a doença me levava a beber água de forma compulsiva e ao mesmo ritmo que a expulsava. Com o tempo, ceguei. Ao princípio ainda via sombras mas ultimamente vivia numa escuridão permanente só aliviada com a presença e atenção dos meus companheiros. Por vezes esqueciam-se, mas é natural. Com o tempo foram tomando mais cuidados. Apesar de tudo, era mais difícil para eles lidar com esta minha nova condição, do que propriamente para mim. Nós, felizmente, habituamo-nos, desde sempre, a utilizar os outros sentidos o que faz com que nos adaptemos melhor.

O Ponto de Interrogação – a minha humana ‘pita’, confessou-me que as minhas circunstâncias a emocionavam e que a fizeram questionar muita coisa: nós aceitamos tudo o que nos acontece. Mas isto não quer dizer que sejamos, obrigatoriamente, submissos. Ela diz que isto a ensinou a descobrir e a integrar a diferença entre aceitação e resignação. Nós aceitamos mas NUNCA nos resignamos. Continuamos em frente porque são as nossas (re)acções que definem a nossa sobrevivência e é a nossa capacidade de resistência que estabelece o objectivo mas apenas e só quando ele é cumprido. Como não questionamos, conseguimos, nestas circunstâncias, ser mais felizes à nossa maneira. Isto para mim é demasiado confuso pois nós ‘não pensamos’ – é o que dizem…

Consegui ser feliz com os meus companheiros – mais do que poderia sonhar. O meu anjo da guarda diz que sou o ‘Hachiko’ dela e tem razão: sou mesmo! Parti porque chegou a minha hora e porque as minhas humanas tomaram a corajosa decisão de não me deixar sofrer mais, uma vez que há dois dias que não comia e já não tinha forças para me manter de pé. Parti pacificamente num sono tranquilo. Quero que saibam que estou aqui. Estamos todos!

Até já!

"Chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais, e nesse dia um crime contra um animal será um crime contra a humanidade."
Leonardo da Vinci

"Não me interessa nenhuma religião cujos princípios não melhoram nem tomam em consideração as condições dos animais."
Abraham Lincoln

"Se quiser aprender a amar, comece pelos animais; eles são mais sensíveis."
George Gurdjieff

"Um país, uma civilização, podem ser julgados pela forma com que tratam os seus animais."
Mahatma Gandhi

“Para se aprender a gostar verdadeiramente dos homens, há, antes de mais, que aprender a gostar dos animais”
Ponto de Interrogação

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Memórias de uma aula no Liceu de Setúbal


Segundo dia de aulas.

Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio de férias.

Estávamos todos fartos do verão, com saudades uns dos outros.

A sala é a mesma do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já ser mais do que velho.

Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado.

Eu sou o n.º 34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é o lugar dos mais altos.

Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política. Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente porque dizem que ele é um fadista afamado.

Tenho realmente uma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria se por causa da política.

A Inês contou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza.

Quando entrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou por ali dentro, todo despenteado, com uma gabardine na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:

— Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear.

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a gente.

A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho.

Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas.

Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se importasse.

Aliás, aposto que nem nos ouviu.

O ar dele, enquanto esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia. Depois, veio o mais surpreendente:

— Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.

Gargalhada geral.

— Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas.

Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e sereno.
Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.

— Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria.

Começámos a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado pela frente um professor com tamanha ousadia.

— Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e cruel.

Não se ouvia uma mosca na sala.

Os rostos tinham deixado cair o sorriso e estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa.

— Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria. Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem entrar na Faculdade. Isso, vocês tem que fazer. Estudar. Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país. Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei. Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade. Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural. Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que terão que ter a paciência de estudar. A matéria é uma falsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais altos objectivos. Têm que estudar. Se quiserem copiar é com vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas. Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que mostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros. Por isso, acho que não devem copiar. Há que criar princípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal. Não concordam? Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula.

Espantoso!

Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que fenómeno é este que aterrou em Setúbal?

Já me esquecia de escrever. Esta ave rara, o nosso professor de Organização Política, chama-se Zeca Afonso.

(recebido via e-mail. Desconhecemos a autoria)


P.S.: Depois de uma pesquisa, descobrimos que a autora deste maravilhoso texto é Hélida Carvalho Santos. Podem ver mais aqui. Foto retirada daqui.

Porque...

... os tempos são difíceis e a mente por vezes apatiza.

Porque a vida nem sempre é o que esperamos dela e nos impõe desafios impossíveis de contornar.

Porque as palavras não podem, nunca, arrancar-se à má fila num contexto de desmotivação, fragilidade e apatia sob o risco de se tornarem banais.

Estamos de volta! Até quando? Essa é uma das respostas que se enquadram na verdade absoluta do 'nunca' ou 'sempre'.

No entanto, algo garantimos a nós mesmas: estamos cá sempre - ausentes ou não - com ou sem palavras e, sem dúvida, enquanto a vontade nos permitir.

Talvez, dado o contexto actual, abordemos outras questões que nos provocam alguma sofreguidão interior.

Afinal, as reticências não são um princípio nem um fim mas sim o que existe entre eles.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Terabytes de bílis...

Estou tão chateada, mas tão chateada da minha vida que, pela primeira vez, desde há bastante tempo, senti necessidade de escrever no nosso reduto. Afinal, talvez seja essa uma das funcionalidades de um blogue com esta vertente: transpor estados de espírito.

E foi exactamente o estado de espírito verborreico em que me encontro, aliado à necessidade premente de aliviar a minha bílis, que me trouxe aqui.

Dizem que tenho muito mau feitio. Acredito que sim, pela forma como muitas vezes me expresso, independentemente das minhas convicções. Uma coisa não tem a ver com outra. Almejo o dia em que, com serenidade, serei capaz de enfrentar situações que hoje fazem com que entre em órbita só pelo simples facto de que as minhas veias começam a latejar com tal intensidade que eram capazes de dar impulso a um foguetão da Nasa para uma qualquer expedição à lua.

Tenho um gravíssimo problema de tolerância para com pessoas que, além de prepotentes, autoritárias e altamente presunçosas, são exactamente o oposto: frustradas, insignificantes e estúpidas que nem uma porta porque nem percebem que, naturalmente, não são donos do saber e, sobretudo, dos outros.

Não sou perita – nem de perto nem de longe – em informática. Considero-me, apenas e só, uma curiosa. Gosto de procurar aprender e investigo muito – só isso. Reconheço as minhas limitações e por vezes a minha impaciência. Mas, para grande desilusão minha e não generalizando e reportando-me apenas à minha experiência, constato que a maioria dos informáticos com quem me tenho cruzado profissionalmente não passam, na sua maioria, de uns incompetentes que mais parecem toupeiras no túnel do Marquês a ver se descobrem qual é a entrada e a saída quando, no fundo, são várias ou ambas. Ou seja, é gente que vê as coisas apenas e só de uma única perspectiva: a sua. O que eles dizem é palavra de ordem porque eles é que sabem! É por isso que tanto admiro os chamados ‘hackers’ ou ‘piratas informáticos’ porque esses, na sua verdadeira vertente – e também não generalizando – são auto-didactas e, excepção à regra, com um espírito de altruísmo, humildade e perseverança inigualáveis. Esses oferecem-nos ajuda. Dão-nos instrumentos que nos ajudam a sermos mais autónomos e não o contrário. O mesmo se poderá dizer dos ‘verdadeiros instruídos’. É que a ‘malta’ ainda não percebeu que há uma diferença abissal entre HABILITAÇÕES e COMPETÊNCIAS. Para além do senso comum e dos princípios de que devemos pautar-nos. Artesãos: são aqueles que sabem e partilham o seu saber. Os que tratam do seu ofício com a minuciosidade e preciosidade que este lhes merece e ainda o passam ao próximo com a mesma generosidade com que o receberam.

Generalizando mas restringindo-me apenas aos que vestem esta (badalhoca) camisola, continuamos a ter o mundo lotado de parasitas que se alimentam das potencialidades e boa fé dos outros (os artesãos), para fomentarem o seu empobrecido ego.

Ó pategos: um dia destes encontram um ‘insignificante ser’ que vos dá uma ‘coça’ tal, que vão pensar que só vieram ao mundo nesse momento. Aí, não haverá ‘terabytes’ que vos valha…

terça-feira, 26 de abril de 2011

Os gatos...

Os gatos

Gosto do gato
do gato gosto
que é animal irracional
de fino gosto.

Tem tanto trato
tanta finura
que mata o rato
com requintes de ternura.

Gosto do gato
do gato gosto
que é animal irracional
de fino gosto.

Lembro que um dia na sacada do meu prédio
havia um gato matulão com malapata
amava ele com paixão mas sem remédio
arisca gata porque aristocrata.

Fazia versos de sardinha prateada
ramos de espinhas com cheirinho a maresia
e a gata persa com esmeraldas na mirada
nunca ligava ao carapau nem à poesia.

Gato vadio animal da minha vida
gato com cio confessando-se ao luar
gato telhado esfomeado e sem guarida
e a gata persa que só come caviar.

Gatos de rua eriçados de verdade
lambendo os restos que há no fundo do desgosto
gato Cesário dos poemas da cidade
com olhos verdes que é a cor de que eu mais gosto.


José Carlos Ary dos Santos (1937 – 1984)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

... afasta de mim esse Cálice...


Michael Ball
(Andrew Lloyd Webber/Tim Rice)

I only want to say
If there is a way
Take this cup away from me
For I don't want to taste its poison
Feel it burn me,
I have changed I'm not as sure
As when we started
Then I was inspired
Now I'm sad and tired
Listen surely I've exceeded
Expectations
Tried for three years
Seems like thirty
Could you ask as much
From any other man?

But if I die
See the saga through
And do the things you ask of me
Let them hate me, hit me, hurt me
Nail me to their tree
I'd want to know
I'd want to know my God
I'd want to know
I'd want to know my God
I'd want to see
I'd want to see my God
I'd want to see
I'd want to see my God
Why I should die
Would I be more noticed
Than I ever was before?
Would the things I've said and done
Matter any more?
I'd have to know
I'd have to know my Lord
I'd have to know
I'd have to know my Lord
I'd have to see
I'd have to see my Lord
I'd have to see
I'd have to see my Lord

If I die what will be my reward?
If I die what will be my reward?
I'd have to know
I'd have to know my Lord
I'd have to know
I'd have to know my Lord

Why, why should I die?
Oh, why should I die?
Can you show me now
That I would not be killed in vain?
Show me just a little
Of your omnipresent brain
Show me there's a reason
For your wanting me to die
You're far too keen on where and how
But not so hot on why
Alright I'll die!
Just watch me die!
See how, see how I die!
Oh, just watch me die!

Then I was inspired
Now I'm sad and tired
After all I've tried for three years
Seems like ninety
Why then am I scared
To finish what I started
What you started
I didn't start it
God thy will is hard
But you hold every card
I will drink your cup of poison
Nail me to your cross and break me
Bleed me, beat me
Kill me, take me now
Before I change my mind

domingo, 13 de março de 2011

Interlúdio...

Porque respirar é preciso para encontrarmos o nosso caminho...

Respirar o ar, a vida, o amor e, essencialmente, RESPIRARMO-NOS!



Midge Ure

With every waking breath I breathe
I see what life has dealt to me
With every sadness I deny
I feel a chance inside me die

Give me a taste of something new
To touch to hold to pull me through
Send me a guiding light that shines
Across this darkened life of mine

Breathe some soul in me
Breathe your gift of love to me
Breathe life to lay 'fore me
Breathe to make me breathe

For every man who built a home
A paper promise for his own
He fights against an open flow
Of lies and failures, we all know

To those who have and who have not
How can you live with what you've got?
Give me a touch of something sure
I could be happy evermore

Breathe some soul in me
Breathe your gift of love to me
Breathe life to lay 'fore me
To see to make me breathe

Breathe your honesty
Breathe your innocence to me
Breathe your word and set me free
Breathe to make me breathe

This life prepares the strangest things
The dreams we dream of what life brings
The highest highs can turn around
To sow love's seeds on stony ground

Breathe
Breathe

Breathe some soul in me
Breathe your gift of love to me
Breathe life to lay 'fore me
To see to make me breathe

Breathe your honesty
Breathe your innocence to me
Breathe your word and set me free
Breathe to make me breathe


quarta-feira, 2 de março de 2011

Memórias...

De algumas das coisas que me orgulho, esta é das mais significantes: o percurso que tenho feito contigo, Vírgula.

Penso que do tanto que temos alcançado uma das coisas mais preciosas é a capacidade que aprendemos de nos VERMOS uma à outra. Seja com o olhar, com o coração ou com os ouvidos, o respeito e cumplicidade crescentes que têm pautado a nossa amizade é algo que me faz pensar no quão preciosas podem ser, de facto, as relações humanas quando, entre outras coisas, a humildade e a generosidade são recíprocas.

Não pretendendo ser este, um espaço de 'troca de galhardetes', há alturas em que não podemos deixar de salientar a existência de alguém que nos é tão próximo e querido. Hoje, esse alguém é, uma vez mais, tu!

Não conheço pessoa mais doce, afável, sensata, carismática e generosa do que tu. Orgulho-me disso: de te ter na minha vida e, acima de tudo, de poder traçar um percurso contigo. A mão que pediste para não te largar responde-te dizendo: não me largues também!

Deixo-te, como prometi, o meu humilde presente: um pequeno apanhado de algumas das nossas mais significativas memórias do mau, do bom e - claro! - do muito bom, na expectativa de ainda vivermos o excelente.

Obrigada, SEMPRE, por existires!



Presente sempre presente...

Eu tenho uma Amiga sempre presente, no presente e de presente!

A nossa querida Vírgula está de parabéns. Faz hoje anos que a vida nos concedeu o presente da sua existência.

O meu jogo de palavras não é, como perceberão, despropositado. Tem, como intuito, abrir o espaço ao que se segue.

Há uns tempos, a Vírgula perguntou-me se, no dia de anos dela, podíamos colocar este vídeo. Não temos trabalhado no blogue devido às mais diversas vicissitudes. No entanto, não esqueci e fica, aqui,o meu primeiro presente.

O tempo tem sido precioso para o nosso percurso individual mas também recíproco. De facto, nada melhor do que estas palavras e esta voz para o celebrar.

Obrigada por existires! O tempo é quando...



Poética

Vinicius de Moraes

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

Oração ao Tempo

Maria Bethania

Caetano Veloso

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definitivo
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo

O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo



terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Ainda a propósito do Broncas...

No Verão fui almoçar a casa da minha amiga Paula. Vive num segundo andar de um prédio que, visto do exterior, parece uma vivenda. Não tem elevador.

Ouvimo-la:

- Vai, Broncas! É o Ponto de Interrogação e a Vírgula. Vai ter com elas, vai!

Correu escada abaixo. Estávamos no primeiro lanço a rir com a sofreguidão dele, que mais parecia um cachorrinho desvairado do que um cão apessoado de 11 anos.

Já não me via há uns tempos. Quando ia a descer, olhou-me e estacou. Devagarinho começou a andar para trás e desapareceu na esquina do corrimão.

Incentivámo-lo.

Primeiro, a orelha e o olho direitos. Pouco a pouco o focinho foi surgindo, espreitando e estudando a situação. Aparecia. Desaparecia. As gargalhadas e ”Broncas, vem cá…” estalavam o silêncio.

Desceu os primeiros degraus mas, numa decisão impetuosa, virou o rabo e zarpou até casa. Voltou e o cerimonial repetiu-se. De repente desceu e dirigiu-se ao Ponto de Interrogação. Se ao menos eu fosse uma bola colorida, grande, pequena ou assim-assim, cumprimentar-me-ia e atirar-se-ia para cima de mim com toda a alegria do universo.

Enchi-o de festas e de palavras tontas e a coisa acalmou.

A casa da Paula é um amor mas pequenina. Para qualquer lado que nos virássemos estampávamo-nos com o príncipe, que queria atenção e brincadeira.

Hora do almoço. Um desastre maravilhoso – as duas manas, “mães” cuidadosas, diziam-lhe determinadamente: “Não, Broncas, não te dou de comer. Isto faz-te mal.” Pelo sim, pelo não, vinha ter comigo. Das duas espetadas divinais, fui retirando, o mais imperceptivelmente que me era possível, pedaços de carne de vaca e chouriço. Deixava descair o braço e zás… uma boca rodeada de pêlo ruivo e barbichinha branca afiambrava o petisco. E, pronto, a Vírgula e o seu príncipe canídeo eram logo alvo de ralhetes. Eu punha um sorriso estúpido e pestanejava candidamente.

Um parêntesis. O Broncas era macho-macho, ou seja, nunca ficou a ladrar fininho, ou seja, a família recusou-se a tirar-lhe os tintins. Assediava a Lady, esterilizada, que o provocava com muita sabedoria, como boa fêmea que é, mas que, depressa, numa postura cheia de pedantismo, o mandava bugiar.

Muito activo sexualmente – demasiado, diria eu –, não era propriamente selectivo. Quase tudo lhe servia desde que tivesse pernas – Lady, bonecos e pessoas. Se estava a ser observado, os fervores cediam com as palavras um pouco mais duras dos donos.

De regresso ao almoço.

Na hora de arrumar a cozinha, o Broncas foi para o quarto encontrar-se com a sua ‘sobremesa’ preferida: um boneco de peluche (sempre o mesmo), com ar decadente de tanto ter sido lavado, esfregado e desinfectado. Acto rápido que nos pôs a rir, com excepção da Paula que começou a dizer mal da vida dela. Pela milionésima vez elevada ao cubo, lá tinha que ir limpar.

Escusado será dizer que não teve descendência.

No passado dia 1 de Janeiro fui jantar a casa da minha amiga Paula.

Serão combinado semanas antes do declínio do Broncas. Na quarta-feira anterior, perto das 20 horas, ele adormecera para sempre.

Parti do princípio de que o encontro ficaria sem efeito. Até disse ao Ponto…: “Vou ter que deixar passar uns tempos antes de ir a casa dos teus pais ou da tua irmã. Não me sinto com coragem para enfrentar o vazio do meu príncipe.” Insurgiu-se. Tinha trocado mails com a Paula que queria mesmo fazer o jantar connosco, numa homenagem ao Broncas, por quem brindaríamos. “Ok – respondi-lhe, emocionadamente acalentada. – Minha querida mana do meio… Não te preocupes, eu dou a ‘volta’.”

Chegámos. Os gestos e as palavras tentavam esconder a nossa ansiedade mas conhecemo-nos bem.

Antes de abrirmos a porta do prédio, olhámos uma para a outra, inspirámos e dissemos. “Bom, cá vamos nós…”.

O silêncio na escada caiu-nos em cima como nevoeiro cerrado e húmido que nos fez doer os ossos e apertar a alma. Dei-lhe a mão e, assim, subimos até ao segundo andar.

Aprendi cedo que mais vale estar calada do que dizer parvoíces mas as emoções conspiram contra nós:

- Santo Deus, nem se ouve a voz da Paula…

Fingimo-nos à vontade apenas nos primeiros momentos. Logo de seguida sentimo-nos mesmo.

A casa da Paula é um amor mas é tão grande…

Desta vez, a fadinha do lar foi o Ponto… Antes e depois do jantar, eu e a Paula continuámos sentadas, a fumar, a beber e a falar.

Conversámos sobre muitos temas. O primeiro de quatro brindes iguais foi para a ausência que sentíamos presente. Levantámos os copos e dissemos a uma só voz: “Ao Broncas…”.

Árido? Não. A energia luminosa que, decerto, esteve connosco, sabe o valor daquele ritual que durou até perto das quatro da manhã.

Tenho muitas recordações dele mas esta tem sido recorrente.

Quis uma lembrança física. Pedi ao Ponto… se me dava uma bolinha, esse objecto que o deixava atabalhoado como se fosse a melhor comida do mundo ou a cadela mais bonita da rua e que tanto o afectou. Há dois anos, numa das suas saídas, e sem que se desse por isso, engoliu uma bola. Guardou-a no estômago durante seis meses até que começou a adoecer, acabando por ser operado.

O Ponto… deu-me três: duas pequeninas e uma assim-assim. A assim-assim é de borracha mole e está toda marcada pelos dentes dele.

Pu-las na estante do meu quarto, em locais criteriosamente escolhidos, num relicário de memórias e de amores.