quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Testemunho de amor e sobrevivência em quatro patas...

Vou tentar contar-vos uma história na primeira pessoa. Não sei se curta se longa. As palavras definirão a sua extensão.

Nasci há cerca de onze anos. Não vou entrar em grandes pormenores sobre os primeiros meses da minha vida porque precisei de demasiado tempo para os tentar esquecer (e consegui) e pretendo que este seja um testemunho positivo e optimista. No entanto, considero importante salientar que esse período condicionou, para sempre, a minha própria existência. Fui muito maltratada – agredida por tudo e por nada, passei fome e, por fim, já nem me recordo se num momento de desespero fugi ou se fui abandonada.

Durante esse período, que para mim foi uma eternidade, integrei demasiados traumas que se revelavam impossíveis de ultrapassar. Penso que sempre fui uma sobrevivente (ouvi dizê-lo muitas vezes a meu respeito, por isso deve ser verdade) e nunca fui de me queixar. A única coisa que nós desejamos é encontrar alguém que nos trate bem e a quem possamos dedicar-nos de alma e coração. Eu não fugia à regra.

Lembro-me que foi num fim-de-semana. Andava a vaguear perdida, esfomeada e muito, muito assustada. Até que vi um ser com ar amigável junto de um outro semelhante a mim, felpudo e com um ar muito feliz. Iam a entrar para um carro. Brrr! Sempre tive medo de carros. Naquele preciso momento um impulso maior que eu fez-me correr e entrar porta dentro. Ainda me puseram fora do carro mas o meu instinto resolveu gritar mais alto e repeti a proeza. Foi a melhor coisa que fiz na minha vida, já que aquele gesto modificou radicalmente a minha vivência e me salvou!

Em poucos minutos cheguei a uma casa onde fui recebida, embora de forma surpreendida, com muito carinho e abertura por aquela que viria a ser o meu anjo da guarda. Senti, pelo cheiro, que já ali tinham estado outros seres como eu. E o ‘felpudo’ também pertencia àquele espaço, o que me tranquilizou. Percebi, mais tarde, que o chamavam carinhosamente por Broncas. Como não sabia o que me iam fazer procurei o primeiro sítio para me deitar tranquilamente de forma a que pudessem ver que era sossegadinha e bem comportada. Não sei o que fiz mas a humana mais jovem disse logo, assim que me viu deitada no sofá encostada às almofadas e semi-encolhida: - Olha! É uma verdadeira lady! A posição dela, tão engraçada…

Senti alguma relutância. Penso que tinham perdido um amigo há relativamente pouco tempo e não sabiam o que haviam de fazer-me. Ainda nesse fim-de-semana tiraram-me algumas fotografias que utilizaram para dizerem ao mundo que me tinham encontrado, caso os meus anteriores humanos quisessem vir buscar-me. Desejei, com todas as minhas forças, que ninguém me reclamasse. E, ao fim de alguns dias, também já os meus novos humanos o desejavam. Até se informaram sobre os seus direitos. Felizmente, a vida ou o destino aclamou-me para eles.

Cedo se aperceberam que eu vivia apavorada com o que, eventualmente, me pudesse acontecer. Fazia-me muita confusão o barulho ou gestos mais bruscos a ponto de me render totalmente deitando-me de barriga para cima e ganindo como se revivesse, naqueles momentos, o que passei nos primeiros meses de que vos falei. Nas primeiras vezes, os meus queridos humanos ficavam atónitos e pensavam que me estava a acontecer alguma coisa. Depois acabaram por perceber a que se devia e tentaram ter mais cuidado.

Lembro-me particularmente do sentimento complacente e cúmplice do meu humano alfa no primeiro dia em que, ao despir-se, o vi tirar o cinto das calças. Entrei de tal forma em pânico que, de fora, pareceria que me estavam a matar. Aprendi, depois, que em circunstâncias normais era apenas um adereço que eles usam para segurar as peças de roupa e não para bater em quem quer que seja.

Levei muito tempo até aprender que podia fazer as necessidades na rua sem que alguém ralhasse comigo; que não precisava de comer às escondidas; que tinha o direito de pedir e fazer festas pois faz parte do que é expectável de nós; aprendi até o que era uma bola já que nunca tinha visto nenhuma nem sabia o que fazer com ela. Isso aprendi com o Broncas – o meu melhor e único amigo da minha espécie. Porque também sempre tive muito medo dos outros cães.

Uma característica minha é a capacidade de ladrar quase incessantemente. Confesso que por vezes se pode tornar desagradável mas não conheço outra forma de me exprimir pelas condicionantes que já referi. Por outro lado e, curiosamente, nunca fui capaz de aprender a uivar, ao contrário do Broncas que até a dormir o faz… E é tão engraçado. Parece que está a ladrar e a cantar o ‘atira o pau ao gato’ ao mesmo tempo: “Auuuuuuuuuuuuuauauauauauauauuuuuu”… É mais ou menos assim - temos aqui um vídeo para vocês verem -. Eu, por outro lado, sou perita em ladrar e comer ao mesmo tempo e os meus humanos riem-se muito. Por falar em comer é o que mais gosto de fazer, juntamente com a atenção e cuidados da minha humana-mãe. É uma cuidadora nata e a ela tudo devo. Adoro todos os meus humanos mas foi ela a única em quem consegui depositar toda a minha confiança.

Talvez ainda não tenham percebido mas à data em que escrevo estas palavras já não estou cá. Faço-o porque continuo, agora e sempre, a existir nos corações daqueles que me acolheram, trataram e acarinharam de alma e coração e a quem retribuí como soube. Faço-o porque, de certa forma, continuarei a existir eternamente noutro plano e é isso que me faz depositar estas palavras pelas mãos da minha humana mais jovem.

Foram onze anos de vida plena. A saúde não nos favoreceu muito – a mim e ao Broncas – mas a dedicação dos nossos companheiros fez-nos lutar pelo tempo que ainda tínhamos. Há dois anos diagnosticaram-me com Diabetes Mellitus e, desde então, passei a tomar injecções de insulina duas vezes por dia que o meu anjo da guarda me administrava sempre com todo o cuidado. Passei de 22 a 8 quilos uma vez que a doença me levava a beber água de forma compulsiva e ao mesmo ritmo que a expulsava. Com o tempo, ceguei. Ao princípio ainda via sombras mas ultimamente vivia numa escuridão permanente só aliviada com a presença e atenção dos meus companheiros. Por vezes esqueciam-se, mas é natural. Com o tempo foram tomando mais cuidados. Apesar de tudo, era mais difícil para eles lidar com esta minha nova condição, do que propriamente para mim. Nós, felizmente, habituamo-nos, desde sempre, a utilizar os outros sentidos o que faz com que nos adaptemos melhor.

O Ponto de Interrogação – a minha humana ‘pita’, confessou-me que as minhas circunstâncias a emocionavam e que a fizeram questionar muita coisa: nós aceitamos tudo o que nos acontece. Mas isto não quer dizer que sejamos, obrigatoriamente, submissos. Ela diz que isto a ensinou a descobrir e a integrar a diferença entre aceitação e resignação. Nós aceitamos mas NUNCA nos resignamos. Continuamos em frente porque são as nossas (re)acções que definem a nossa sobrevivência e é a nossa capacidade de resistência que estabelece o objectivo mas apenas e só quando ele é cumprido. Como não questionamos, conseguimos, nestas circunstâncias, ser mais felizes à nossa maneira. Isto para mim é demasiado confuso pois nós ‘não pensamos’ – é o que dizem…

Consegui ser feliz com os meus companheiros – mais do que poderia sonhar. O meu anjo da guarda diz que sou o ‘Hachiko’ dela e tem razão: sou mesmo! Parti porque chegou a minha hora e porque as minhas humanas tomaram a corajosa decisão de não me deixar sofrer mais, uma vez que há dois dias que não comia e já não tinha forças para me manter de pé. Parti pacificamente num sono tranquilo. Quero que saibam que estou aqui. Estamos todos!

Até já!

"Chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais, e nesse dia um crime contra um animal será um crime contra a humanidade."
Leonardo da Vinci

"Não me interessa nenhuma religião cujos princípios não melhoram nem tomam em consideração as condições dos animais."
Abraham Lincoln

"Se quiser aprender a amar, comece pelos animais; eles são mais sensíveis."
George Gurdjieff

"Um país, uma civilização, podem ser julgados pela forma com que tratam os seus animais."
Mahatma Gandhi

“Para se aprender a gostar verdadeiramente dos homens, há, antes de mais, que aprender a gostar dos animais”
Ponto de Interrogação