sexta-feira, 9 de abril de 2010

Desacertos 2

- Júlio?

- Olá, amiga. Que bom ouvir-te. Estás bem?

Que chatice. A tecnologia vai retirando a possibilidade de fazermos surpresas.

- Acho que sim. E tu?

- Achas...? O que se passa?

- Ah, nada de especial. A rotina de sempre. Acaba por desmotivar, não é?

- Pois é, tens razão. Sinto o mesmo. Então, o que é que queres?

Cada vez mais pragmáticos e incisivos. Que chatice.

- Precisava desesperadamente de ouvir uma voz amiga e afectuosa. Tenho tido alguns problemas e...

- Bom, nem me digas nada. Não imaginas o que tem sido a minha vida...

- É?

- Olha, estive internado, há um mês, com uma mononucleose. Ainda não me sinto bem mas já estou a trabalhar. Sabes como é...!? Não dá para estarmos de atestado. Mais a mais, a Clara está de novo desempregada...

- O quê?

- É verdade. Nem dá para acreditar, não é? Tive que ‘cortar’ numa série de coisas. O que mais me custa é não poder dar aos miúdos a qualidade de vida a que estavam habituados...

- Meu Deus... Não há nada que não te aconteça, rapaz.

- Ah, mas isto é só uma pequena parte.

- Uma pequena parte...?

Falou-me da insuficiência cardíaca da mãe, do AVC do sogro e do cancro do pâncreas que descobriram na sogra. Com tamanha disfunção, as crianças ficaram com problemas comportamentais – todas na pedopsiquiatria. Uma, com perturbações do sono, outra, com incontinência urinária e, a terceira, com tiques estranhíssimos que “nos dão cabo dos nervos”.

- Acabo por andar aos berros o tempo em que estou em casa. A Clara... bom, completamente insuportável. Claro que já estamos com problemas no nosso casamento.

- Querido, nem sei o que dizer... Mas como é que é possível?

- Não sei. Não sei. E tu? O que é que me querias dizer?

- Nada, amigo, absolutamente nada. Não te esqueças: se precisares de alguma coisa, estou aqui. Mas, olha, no meio disto tudo, como é que te estás a aguentar?

- Só me apetece dar um tiro nos cornos...

- Júlio, por amor de Deus, isso resolvia o quê?

Atropela-me.

- ... Não tenho paciência para nada. Ora desatino, ora choro. Sinto-me com o mundo às costas. E o meu médico a querer dar-me antidepressivos, vê lá tu.

- E então? Qual é o problema?

- Qual é o problema? – grita. – Eu sou mais forte que qualquer comprimido ou não me conheces?

- Ah, claro.

Despedimo-nos assim que consegui.

Sentei-me, extenuada. Perante tantos problemas e necessidade de partilha nada havia para dizer.

Afinal, eu apenas tinha nas mãos e na alma a sentença de seis meses de vida.


4 comentários:

Francisco disse...

Pelo que percebi, trata-se de um diálogo entre dois eventuais amigos que já não se falam há algum tempo. No fim, um põe e o outro dispõe... Há sempre alguém que anda com o mundo às costas.

Faz-nos pensar porque é que por vezes somos tão disponíveis e nos pomos a jeito...

Agradeço, porque estas palavras que aqui tenho encontrado, fazem-me pensar.

Continuem!

Vírgula disse...

Olá, Francisco, uma vez mais!
Este 'post' foi inventado mas, naturalmente, tem por base a minha experiência. Pois é, esta coisa de nos pormos a jeito tem muito que se lhe diga. A verdade é que já deveria ter-me modificado, mas ainda não não tive capacidade para tal. Por vezes, dá vontade de dizer: 'bolas para mim!'.
O seu feedback é maravilhoso e se, de alguma forma, estes textinhos lhe agradam e o ajudam a reflectir, fico muito satisfeita. Pelo menos, as palavras têm uma direcção que seja (o Francisco) e isso enche-me de perplexidade e de alegria.
Obrigada!
Outro abraço.

Francisco disse...

Pelo que já me foi possível verificar, estas palavras têm mais do que uma direcção. Ou que não têm direcção específica. São dirigidas a "Vários destinos". Acima de tudo, parece-me uma excelente forma de se despe(o)jarem.

Continue e obrigado pelas suas palavras que também me surpreenderam. Se dei algum contributo, ainda bem, mas não se esqueça que o mérito é seu. ;)

Vírgula disse...

O Francisco é um excelente observador.
Obrigada!
Tenho dificuldade em considerar que tenho 'mérito'. Gosto de escrever e se não tiver um objectivo não o faço. Não pensei que, algum dia, tivéssemos leitores, muito menos fiéis.
Acredita que me tem dado presentes maravilhosos?
Abraço!