segunda-feira, 5 de abril de 2010

Demito-me!

Hoje é um daqueles dias que persiste em fazer ecoar o som da chuva e do vento na minha cabeça. Um daqueles dias que me faz reflectir e perscrutar sobre os meus próprios vendavais e bonanças.
Dou por mim com uma infindável monção de pensamentos que insistem, fervorosamente, em alagar o meu coração e marejar os meus olhos de lágrimas.
É então que questiono sobre o que me leva, realmente, a estar assim.
Inspiro. Olho para o vazio e sinto que este é, na verdade, um misto de tudo e nada. Um turbilhão de coisas que, de tão numerosas, teimam em anular-se reciprocamente. Culpa minha. O racional e o emotivo em luta constante por um pedaço de atenção permanente.
Fecho os olhos e tento ver o reflexo de mim mesma. O reflexo do que sou, do que represento para o mundo e para mim mesma. Inspiro, uma vez mais. O ar está tão carregado que é como se eu sufocasse nos meus próprios pensamentos. Os sentimentos, recalco-os. Quando, de repente, me sinto despertar por uma tempestade de emoções que, embora conhecendo-as, investem sempre como se fosse a primeira vez.
Dou por mim a gritar silenciosamente por apenas um minuto de eterna serenidade, até que, inesperadamente, ele chega. E, com ele, chegam também sessenta segundos de bonança. Aquela que permite, numa fracção de tempo, renovar.
Rejuvenesço, então, os meus pensamentos. Deponho a esperança, o lirismo e a utopia que me caracterizam, num depósito de reciclagem que guardo secretamente dentro de mim e a que recorro quase sempre instintivamente, em períodos de carência afectiva. Faz-me lembrar que, por alguma razão, existo.
Passados sessenta segundos, nova enchente. Desta vez vem acompanhada de detritos que trazem, com eles, imagens vívidas de memórias, realidades e desesperança. Penso na humanidade e, consequentemente, penso em mim mesma.
Recordo a infância que praticamente esqueci. A adolescência que não vivi. A marginalização de mim mesma. A solidão. Recordo, até, a minha inexistência até há relativamente pouco tempo. O que não fui. O que não me permiti ser. E o que sou.
Recordo a ilusão de duas mãos dadas. De momentos de carinho que, por mais fugazes que fossem, na realidade nunca existiram. A ilusão é isso mesmo. A esperança irrealizável. Uma quimera. Aquilo que eu pensava ser a fusão de dois corpos era, afinal, a cisão. A unicidade daquela relação estava, apenas e só, na minha cabeça. Também... o que é que eu podia esperar de uma diferença de trinta e dois anos de existência? Quem era eu? Ou, por outro lado, quem era ele?
Nova bonança, novo fôlego, nova renovação. Que retirei eu desta experiência? Apesar de todas as dificuldades e cicatrizes que tardam em sarar, a capacidade de ser gente. A capacidade de perceber que existe em mim uma imensa capacidade de amar. De dar. E de receber. Resta-me aprender a fazê-lo.
Embora eu não o percebesse na altura, a vida tem-me oferecido presentes maravilhosos.
Novo influxo. Desta vez, dou por mim a pensar-me como parte de um todo. Agora, a devastação interior é maior. A minha cabeça parece uma torrente de incessantes e ensurdecedoras emoções e raciocínios.
Penso, revoltada, porque raio havemos nós de ser tão complexos? Porque é que calamos, silenciamos, agredimos, abdicamos, fugimos e, no fundo, receamos as melhores coisas e, por outro lado, aceitamos tão complacente e resignadamente o pior da vida? O pior de nós? Será por pensarmos que não temos outra escolha? Que a única alternativa é esperar pelo bom e suportar o que já é mau?
Diz-se que só aprendemos a dar valor ao que perdemos. Então e se soubermos dar valor ao que não temos nem nunca tivemos? Ou se, por outro lado, soubermos dar valor ao que já temos?
Nova e última bonança. Para já...
Afago os olhos. Limpo as lágrimas. Inspiro. Desta vez sinto o ar mais leve. Recorro à reciclagem. Àquele pedaço de mim mesma que é única e exclusivamente meu.
Agradeço a Deus, à vida e a mim mesma pelas pessoas que conheci. Pelas que conheço. Pelo bom e pelo mau. Por me darem a capacidade de crescer e de querer ser gente. Por me permitirem sussurrar a importância de mim mesma. Uma importância por descobrir, é certo. Mas à descoberta.
No oceano que sou, vejo o reflexo de mim mesma. E é então que acredito. Acredito na bondade humana. Acredito no amor. Acredito na luz. Acredito no acreditar e, acima de tudo, permito-me, em fracções de tempo, efectivar a renovação e acreditação de mim mesma.
Demito-me da pessoa que sou e entrego-me à pessoa que quero ser com a consciência de que a vida é um fluxo de tempestades e bonanças.
É o que desejo para mim. É o que desejo para o mundo.

6 comentários:

Anónimo disse...

Como disse um mestre há muitos muitos anos atrás, "...o verdadeiro condutor não é aquele que nunca teve um acidentem,mas sim aquele que, depois de ter saído da estrada, de novo leva o carro para ela". A vida, segundo alguns, não é mais que um contínuo circulo entre o bom e o mau, doce e amargo...se nunca o interrompermos, e nele nos integrarmos, vivemos...caso contrário sobrevivemos...quem sabe onde está a razão, ou mesmo se ela é para aqui chamada...tv mesmo sejam os que dizem k vivamos a vida tal como ela é disfrutando o prazer e suportanto a dor...por certo não deixaremos nem de viver nem de morrer...e essa verdade ninguém a pode contestar.
Um abraço...

Ponto de Interrogação disse...

Confesso que gostei muito deste comentário por vários motivos: pelas palavras nele contidas, pela mensagem e pela agradável surpresa.

Não sei quem é, mas agradeço de coração e espero que continue(s) a visitar-nos e a contribuir com estas e outras palavras pois dão-nos o alento de que tanto precisamos.

Obrigada, de coração!

Abraço igual!

Anónimo disse...

Não sendo frequentador destes meios, face a uma resposta simpática não tenho outro remédio que voltar a responder. Ainda bem que lhe agradou o que disse e espero que, conforme parece gosta de meditar, medite nas palavras dquele sábio, de seu nome Gautama, mais conhecido por Buda. Por certo encontrará mais vezes a serenidade que parece buscar. Não prometo voltar a este espaço...até porque nem semrpre tenho utilidade como agora parece que tive, nem sequer tempo para tal. Há sempre uma luz à nossa frente...o difícil está em conseguirmos vê-la...mas isso é sermos humanos e é vivermos. Felicidades.
O anómimo

Ponto de Interrogação disse...

:-) Não posso deixar de responder com um enorme sorriso.

As palavras aqueceram-me a alma e o coração. Considero-me uma pessoa reflexiva em busca da luz e da serenidade, sim. Ainda tenho um longo caminho para percorrer.

Quanto à utilidade que é referida, lamento discordar. A partir do momento em que se é presente - seja com silêncio, palavras ou gestos - mas realmente presente, creio que é dos melhores contributos que podemos dar aos outros. Lembrá-los de que, no fundo, não estão sós.

Obrigada, uma vez mais!

(E, por favor, volte sempre que o tempo e a vontade o permitirem)

Francisco disse...

Belíssimo texto! Consciente e renovador.

Continue!

Ponto de Interrogação disse...

Muito obrigada, uma vez mais, pelas suas palavras.

Gostei muito de escrever este texto. Libertou-me!

Entretanto, ficamos à espera das suas visitas...

Abraço!