segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Abusos sexuais, silêncios e destruição

O Tomás foi, em criança, angelicalmente bonito. Caracóis loiros, olho grande azul mar, esguio e sempre alto para a idade.

O pai, militarmente exigente, constituía, na mente infantil, o inimigo indesejado. Pouco apoio desfrutava da mãe, que entendia que o marido, tivesse ou não razão, deveria ser alvo de pedido de desculpas. Com um apurado sentido de justiça, Tomás recusava-se e deitava-se na cama, tendo, por companhia, solidão e lágrimas.

Foi assediado sexualmente a primeira vez e calou. Morando numa terra pequena, onde a família era das mais proeminentes, conhecia o agressor.

Na segunda vez, o pedófilo era amigo do pai. Naquela cabecinha magoada e confusa, pensou que o progenitor sabia e que os actos faziam parte de um acordo. Haverá maior dor para uma criança?

Continuou a silenciar.

Aos 17 anos teve uma depressão que o obrigou a medicação e terapia. Entrou em medicina e durante vários anos fez psicanálise, psicoterapia e terapia de grupo. Estudou psiquiatria de forma desenfreada e apaixonada e fez o seu caminho.

É um homem de sucesso profissional e de fracasso familiar.

Ao nível dos afectos, é inseguro e intolerante.

Depois de muito forçado, assume que nem sempre consegue ser rápido a integrar as coisas que ouve, sobretudo quando são muito pessoais. Também admite que tem dificuldades relacionais interpessoais, além de sociais a um nível restrito, e que, sem dar conta, por vezes usa o seu modo de funcionar profissional para compensar esses obstáculos. A pessoa fica submersa no profissional. Perdeu – ou nunca teve – disponibilidade para conseguir estabelecer pontes entre estas dessintonias.

“O sofrimento pessoal precoce parece que nos leva a estar mais atentos aos nossos mecanismos e aos dos outros.”, diz. Será? Não no caso dele. Lamento, Tomás!

A Marta, assediada aos quatro anos, perplexa pela incompreensão e excentricidade dos gestos, contou à mãe. A partir de então, nunca mais pôde brincar na rua sozinha. Passou a andar acompanhada pelo menos por um adulto.

Passaram mais quatro anos e foi viver para um prédio onde morava uma coleguinha de escola. A mãe continuava controladora e selectiva. Mas como bastava apanhar o elevador, deixava-a ir brincar com a Gena quase todas as tardes.

Foi abusada pelo pai da amiga. Quando o encontrava, ficava em pânico: cada vez, o invasor ia mais longe. Certa de que se tratava de alguma coisa muito má, nesta ocasião ocultou o sucedido. Foi-se afastando à força de desculpas.

Talvez um mês depois, na ida para o colégio, a Gena perguntou-lhe:

- O meu pai fez-te alguma coisa?

- Alguma coisa como? – respondeu, tentando ganhar tempo.

- Um dia, a Sofia estava lá em casa e começou aos gritos e a chorar, dizendo que o meu pai a apalpou, a obrigou a mexer-lhe em sítios esquisitos e que lhe meteu a língua dentro da boca, …

Num estranho movimento de descentração para a idade, pensou no seu próprio progenitor, o herói da sua vida, e sentiu uma dor imensa.

- Claro que não, Gena. A Sofia não fez sesta em tua casa?

- Fez.

- Então, se calhar, acordou com um pesadelo. Olha, não penses mais nisso.

Fez um processo de recalcamento.

Considerava-se estranha: começou a namorar cedo mas o toque mais íntimo que permitia resumia-se a pegarem-lhe na mão.

Aos 16 anos foi a um retiro de jovens, liderado por um psicólogo. Ele começou a escolhê-la como parceira de exercícios e mimava-a. Quanto maior a proximidade, maior a zanga contra ele. A sua melhor amiga, que a tinha acompanhado, reparou e fez com que ela falasse. Depois de seis horas de conversa, recordou-se de supetão do que lhe tinha acontecido. O elemento despoletador do desconforto e, mais tarde, da lembrança, tinha a ver com parecenças físicas assombrosas e sotaque igual.

Fez, também ela, o seu caminho.

É uma mulher de desembaraço profissional e de insucesso familiar.

Ela e o Tomás conhecem-se há vinte anos. Mas só há pouco mais de dois entraram em relação. Calma, sintónica e feliz com um fim inquieto e desordenado.

Ao nível dos afectos tem graves obstáculos em dar e receber.

Tomás dedica a sua vida a ajudar a esclarecer os outros e trabalha arduamente a favor das vítimas de abusos sexuais.

Marta é uma ouvinte genética. Não descobriu, até hoje, por que as pessoas mais improváveis lhe contam segredos resguardados. Mas continua à espera que um homem a veja e queira fazer, com ela, um crescimento emocional, sentimental e cognitivo.

Uma lenda que deixe um livro em branco e que lhe aterre no colo.

3 comentários:

Ponto de Interrogação disse...

Não posso deixar de comentar este post, querida Vírgula.

É óbvio que a escrita tem sempre, pelo menos, um pouco de nós. Conhecendo-te como conheço, acho que projectaste muito bem as tuas vivências e o que vais apr(e)endendo e conhecendo dos outros.

Apesar do tom nostálgico mas, infelizmente, realista, gostei muito, muito, muito deste post porque abrange toda uma série de problemáticas interiores que afectam muitos de nós.

O que é preciso, afinal, para sabermos (sobre)viver?

Até onde podem ir os nossos afectos e a nossa incapacidade para os gerir?

Qual o impacto que o nosso comportamento pode ter nos outros?

Como ultrapassar traumas que nos marcam para toda a vida sem que isso conflitue com o nosso relacionamento com aqueles que nos são mais importantes e até onde é que eles estão dispostos a ir para nos ajudarem a superá-los e vice-versa?

Deixaste-me a pensar...

Amei este texto!

Obrigada por o teres escrito tão bem. Emoção há muita. Mas talvez se expresse de outra forma ;o)

Abraço grandalhão!

Vírgula disse...

Não estava à espera do teu comentário, Ponto... E agradeço-to!

Essas são questões que atormentam muitos de nós.

Já é a segunda vez que escrevo sobre abusos sexuais e espero ficar por aqui. Este post surgiu com a caso Casa Pia, sobre o qual não discuto, como sabes.

Abraço igualinho!!!!!!!!!!

Anónimo disse...

Querida mana,

Este post que retrata fielmente o quanto um abuso sexual pode afectar quem é vitima dele,embora contado como estória assemelha-se muito a uma realidade infelizmente vivida por ambos os protagonistas. Há que apesar de tudo, tentar superar e seguir sempre em frente sem más recordações. Os protagonistas deste "conto", merecem ser felizes.


Abraço grande