sábado, 19 de junho de 2010

José Saramago

“O pior que a morte tem é que antes estavas e agora já não estás”


Conheci-o era já um escritor reconhecido mas discreto. De ar carrancudo (quem sabe, infeliz!?), vivia na altura com a Isabel da Nóbrega, mulher mais mediática com aquela particularidade facial de quem está prestes a romper em choro.

Estava eu na cozinha da casa de uns amigos comuns, em volta de patos mortos e depenados, quando ele entrou. Foi-me apresentado e, ao contrário do que poderia contar o meu imaginário, não simpatizei com a figura encurvada e marcada pelo tempo. Pensei perceber, no entanto, uma barreira para esconder uma timidez e introversão acentuadas.

Na noite seguinte, no jardim dessa casa, houve uma festa em sua homenagem. Meteu vestidos de alta costura, luzes especiais, fotografias de familiares da mulher pela sala e microfones. Vários discursos. Extenuada de um dia de trabalho duplo e estudos, não retive nenhuma frase.

Alguns anos depois revejo-o na televisão. Estava já casado com a Pilar. Aquele homem racional e alegadamente frio, deu uma entrevista de duas horas à Marília Gabriela. Fiquei em estado de assombro e, pela enésima vez, revoltei-me contra os juízos de valor. Cento e vinte minutos maravilhosos de uma dialéctica inesperada.

A determinada altura, a jornalista introduz o tema da companheira. Aquela expressão dura, que ele nunca conseguiu amenizar, parecia contrariar as palavras, mas não interessava. O conteúdo era tão forte como os carrilhões de Mafra. Lembro-me de pensar: “Está bem, querias... Como bom comunista que é não vai falar da vida pessoal. Nunca o fez...”. Engano puro e duro.

Acredito que todas as mulheres que conheci e que passaram pela minha vida foram um percurso necessário para encontrar a Pilar”.

Admirei sempre a ligação entre estes dois seres, fisicamente tão diferentes e distantes em idade.

O meu pensamento vai para este escritor que revolucionou a literatura, à semelhança e em picardia com Lobo Antunes, mas dirige-se particularmente para a dor imaginada da sua última mulher, o amor e o suporte da sua vida.

Foram vários os livros que li dele (não todos!), mas não esqueço o “Ensaio sobre a Cegueira”, essa alegoria da distracção social e política do Homem e da decadência violenta a que chega em circunstâncias nem sempre extremas.

Polémica, a atribuição do Nobel. Não para mim. Não sendo um escritor da minha alma, considerei-o e considero-o um artista do léxico e da gramática. Um pensador.

Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo.




José Saramago
Jornal da Globo
Parte 1




José Saramago
Jornal da Globo
Parte 2


2 comentários:

Anónimo disse...

Bela homenagem. Não o conheci pessoalmente, mas para mim também era um homem carrancudo. Algum motivo teria.

Temos quase todos os seus livros, mas o especial para mim é A Viagem a Portugal.

Escritor,solidário e Homem do Mundo, é pena que algumas pessoas (e refiro-me aos intelectuais e politicos da nossa praça), só agora que ele morreu, falem dele. Foi votado ao ostracismo pelo próprio país daí o seu exilio voluntário para Lanzarote.

Que tenha no sitio para onde foi, aquilo que desejou ter aqui.

Paz à sua alma.

Noémia

Vírgula disse...

:) Obrigada, Mana!!! Escrevi o texto mas não me agrada. Penso que poderia ter feito melhor.
Mais uma vez, eu o Ponto... entrámos em 'discussão'. A ideia dos vídeos foi dela e são eles que dão a riqueza ao 'post'. Pretendia que ela assinasse mas recusou... Miúda difícil...

Infelizmente, como é habitual, este grande escritor foi mais reconhecido lá fora. Ontem, ouvi a vice-presidente de Espanha, que representou Zapatero nas exéquias. Discurso maravilhoso. Ainda tentei estar atenta à nossa ministra da cultura. Mas não há paciência.

Ver Saramago em Lanzarote, misturando-se com a paisagem, faz-me pensar que, com todo o desgosto do 'exílio', encontrou o local dele.

E, depois, esse grande Amor que viveu com a Pilar e toda a admiração que o mundo lhe demonstrou ao longo dos tempos, talvez lhe tenha minimizado a dor.
Encontrará, certamente, a Paz.