sábado, 3 de novembro de 2012

Eu, saudosa, me confesso...

Ouvi dizer. O que, neste caso, é para mim, no mínimo, doloroso.

Não estive presente no primeiro e no último concertos de Leonard Cohen. No primeiro, estava absorvida por demasiadas circunstâncias complicadas e não tive conhecimento, o que não deixa de ser estranho porque, na altura, era jornalista.

Neste último, quando os bilhetes foram postos à venda, não tinha 75 euros para ficar nas primeiras filas. Agora sou funcionária pública ou, melhor dizendo, trabalhadora (cigarra, na opinião imbecil de uns quantos cretinos, que trabalha que nem formiga) vendo a classe média, a que sempre pertenci, por um canudo cada vez mais estreitinho…

Ao contrário de muita gente, não necessitei de aprender a gostar do Cohen. Foi amor ao primeiro acorde. Adolescente ainda, ouvia sofregamente Suzanne e Joan of Arc. A voz dolente e a interpretação sofrida estimularam a minha necessidade de querer conhecer mais e mais. Não só sobre a arte que criava, como a pessoa que era.

Tímido em extremo, foi Judy Collins que o lançou depois de escutar diversas canções de que não gostou. Tinha acabado de ouvir, via telefone, o maravilhoso Suzanne e convidou-o para o próximo espectáculo dela. Na altura própria, apresentou-o e ficou a observá-lo. 

Hesitante e de guitarra na mão, entrou no palco, dirigindo-se ao microfone. A tremer, ficou a olhar para o público. Tentou começar a cantar, interrompeu e disse: “Lamento mas não consigo”, saindo de seguida para os bastidores.

Collins insistiu, tentou acalmá-lo e convencê-lo a regressar. Leonard Cohen cantou e foi ovacionado por gente deslumbrada e emocionada.

Tinha começado o longo e penoso caminho de uma história de encantar.

Em 1980 fui vê-lo ao Coliseu. Aos 46 anos, estava no auge do seu fascínio. Sempre de fato, cabelo escuro ondulado e curto, poucos fios prateados, realçado com gel. Voz muito mais grave e rouca, pelos anos de cigarros, noitadas, bebidas e drogas. Mas também mais amargurado que nunca. Olhar triste interrompido, por vezes, pela ironia – imagem de marca durante muitos anos.

Interagiu com a plateia, contou histórias de algumas canções como a do Chelsea Hotel nº 2, considerações sobre outras (Take this Waltz – versos de Lorca, o poeta espanhol que lhe “estragou a vida” e que nela está sempre presente porque deu o nome dele à filha numa homenagem sentida a um dos seus escritores preferidos -, em que com toda a elegância se aproximou do coro em passos dançados, e The Tower of Song).
Artista no verso e na palavra falada.

Consegui um encontro com ele no dia seguinte, minutos antes de partir na sua caravana para Barcelona. Conversa breve mas assombrosa. Nunca esqueci aquela cara, aquela afabilidade e calma, aquele olhar como não encontrei segundo, aquela voz que faz desaparecer tudo o que não seja ele.

(Disse há muito tempo neste blogue que tenho uma grande paixão na vida mas que a confissão ficaria para mais tarde. Está agora desvendada.)

A mulher foi sempre uma das suas debilidades e também uma das suas grandes dores. Sensibilidade notável para a entender e oferecer-lhe palavras que destronam os diamantes como o nosso principal amigo.

A vida não lhe tem sido fácil. Nunca o é para os superiormente inteligentes e grandes artistas.

Bono, com muita sabedoria, afirmou há uns anos: “Leonard Cohen é a única pessoa que conheço que esteve à beira do abismo, olhou para ele, e regressou a rir.”

Após o desfalque da sua antiga manager, digressão aos 70 anos. Lisboa no destino. Com a minha irritante costela burguesa, só por ele estaria cinco horas em pé. Com a memória dos seus 46 anos, custou-me ver um homem envelhecido, magro, cabelo branco e parco. Ilusão. Entrava e saía do palco aos saltinhos ou a correr. O olhar – sempre o olhar – estava pacificado. A expressão de menino, serena e profunda, a denunciar o quanto tinha aprendido com a vida. Nenhum sinal de cansaço.

Veio mais duas vezes, actuando destas vezes, no Pavilhão Atlântico. Estive presente.

Sempre com uma generosidade e humildade inultrapassáveis. Apresenta a banda diversas vezes e agradece ao coro individualmente. Quando não canta, dá o protagonismo aos músicos e esconde-se na escuridão. Ou, então, coloca um joelho no chão, tira o chapéu que fica reverentemente encostado ao peito, olhos fechados, cabeça inclinada. A música 
atravessa-o e chega até nós purificada.

Os encores são quase tantos quantos os que pedimos. Agradece a presença do público como se não merecesse a comparência dos que o veneram. Sim, porque cada espectáculo de Leonard Cohen é um retiro de espiritualidade redentora. A sentirmo-nos menores perante este homem maior.

Ouvi dizer.

Ouvi dizer que este concerto, com a duração de quatro horas, foi ainda mais zen. Que estava feliz e parecia não querer sair do palco como se soubesse que esta seria a sua última vez.

Ouvi dizer e senti o mundo tremer.


1 comentário:

Ponto de Interrogação disse...

Considero este texto lindíssimo.

Acho que te percebo - pretenciosismo meu, eu sei. Mas de sentimentalismos percebemos nós feliz e infelizmente.

Isto ocorreu-me agora mesmo: acho que me ajuda pensar que estes seres que temos e sabemos como especiais, são humanos com qualquer um de nós - com virtudes e defeitos. A grande diferença está no que fazem. A arte é um dom e uma benesse. E a música é, para mim, o idioma de Deus. Quem consegue expressar os seus sentimentos, valores e princípios sem cair na vulgaridade como é o caso do Cohen é, sem dúvida, um ser maior.

Conforta-me saber que há quem se expresse assim e que não são tão poucos os que o fazem.

Abraço gigante!