Reticência(s)...
As reticências são, na escrita, a sequência de três pontos (sinal gráfico: …) no fim, no início ou no meio de uma frase. A utilização deste género de pontuação indica um pensamento ou ideia que ficou por terminar e que transmite, por parte de quem exprime esse conteúdo, reticência, omissão de algo que podia ser escrito, mas que não o é.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
Que Se Lixe a Troika! Queremos as Nossas Vidas!: Texto de Nuno Gomes dos Santos
Que Se Lixe a Troika! Queremos as Nossas Vidas!: Texto de Nuno Gomes dos Santos: Dos fracos não reza a estória Foi Hemingway que o disse: um homem pode ser destruído, mas não derrotado. Ponhamos no plural, tanto val...
terça-feira, 10 de setembro de 2013
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Homenagem à minha maneira com ponto de interrogação
Meu querido Pai,
É muito cedo para falar de ti, do que sofreste e passámos em finais de Maio, Junho e Julho.
Com 86 anos, davam-te menos quinze ou vinte anos. Orgulhavas-te dos teus genes incomuns.
Há quase três anos ultrapassaste, com convicção, uma lobotomia, a quimioterapia e os tratamentos a que te submeteste na sequência de um cancro no pulmão.
Quando te dei a notícia, da forma mais calma e terna que encontrei, tu já suspeitavas.
Disseste-me e repetiste por diversas vezes: ”não te preocupes porque hei-de vencer a doença”.
E conquistaste esta inesperada guerra que acompanhei e vivi.
Sempre me envaideci do teu aspecto tão interessante, e quando te dizia “estás giríssimo”, ironizavas: “estou giiiirooooo? Não percebo. Não sabes que a mim qualquer trapinho me fica bem?”. Ouvi esta frase centenas de ocasiões mas acabávamos sempre às gargalhadas, porque ambos conhecíamos a tua modéstia, o teu sentido de humor e a tua indiferença relativamente ao exterior, bonito, feio ou assim assim.
Fazes parte das pessoas coerentes, verticais, demasiado honestas, que desempenhou uma carreira brilhante a pulso, assertivo, compreensivo, tolerante e generoso mas é a ti que mais amo.
Foste, para mim, o suporte, o docente de excelência, o companheiro, o “estou sempre aqui”, a luz a que deveria ter recorrido mais pelo teu bom senso, correcção, pragmatismo e saber fazer e dizer.
Recebeste muitos embates da vida mas cumpriste a tua missão como um anjo sem asas. És um ser de fé, bem-disposto, irónico, que enfrenta os problemas quando vêm – nem antes nem depois.
Esta última característica que advinha de um autocontrolo invejável foi perdendo força nos últimos anos. Estavas demasiado cansado por teres tomado conta de tanta gente que, por bem, por mal ou por ignorância te vampirizavam. Eu incluída.
Eras um deus desconhecido – a terra prometida. Palavras escolhidas. Leitor voraz, adoravas o Steinbeck.
Já sabes a falta que fazes, a saudade que corrói e a vontade constante de poder atravessar dimensões para me esconder nos teus braços.
Caí no caos e na irracionalidade. Zanguei-me contigo, depois de morto, pelo que deixaste por fazer e que caiu em cima de nós, melhor dizendo, sobretudo em cima de mim. Esqueci-me das tuas lições. Provas de vida que nos desafiam, tendo sido tu um dos instrumentos. E renasci sem raízes porque não estás comigo. Mas renasci.
Fui a penúltima pessoa que se despediu de ti.
Há ironias estranhas. Uma infecção urinária originou algaliação e uma septicémia que te levou em poucas horas, precisamente no dia em fizeste 87 anos.
Disse-te adeus, sem te forçar a nada, porque sabia que, mesmo que voltasses para casa, te tinha perdido.
A miúda foi a última e também pôde observar esse olhar derradeiro de quem já percorre outros caminhos.
Assistiu, na primeira pessoa, à tua primeira paragem cardíaca sem perceber o que se tinha passado mas sentindo que também ela te perdera.
O fim para todos nós.
Ou um interregno penoso.
Gostavas muito de a ouvir e lembro-me, como se fosse hoje, a emoção que invadiu o teu rosto quando ela cantou A Gaivota num piquenique das duas famílias una.
Para ti, Pai. Com todo o Amor.
"(...) Se ao dizeres adeus à vida
as aves todas do céu
me dessem na despedida
o teu Olhar derradeiro
esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro(...)"
quarta-feira, 6 de março de 2013
A espera...
Esta sou eu à espera de um homem.
Calma! Não estou desesperada... Quer dizer... Mais ou menos. Espero por
um homem que não seja perfeito e que aceite nele e em mim essa
condição.
Um homem que através da imperfeição me ajude
ajudando-nos a encontrar o equilíbrio que se quer num relacionamento com
todas as vicissitudes que lhe são inerentes. Afinal, quando a vida é
demasiado fácil não tem graça nenhuma. Mas também não tem de ser
demasiado difícil.
Um homem que me oiça e me permita ouvi-lo;
Que aceite os meus silêncios como eu tentarei aceitar os dele;
Que me dê espaço como eu tentarei respeitar o dele;
Que me respeite como eu tentarei respeitá-lo;
Que seja tão honesto quanto eu serei com ele;
Que não tenha medo ou vergonha de me dar a mão e saiba que a minha estará sempre com ele;
E que, entre o tentar e o não conseguir, encontremos uma forma pacífica
de conciliar as nossas vontades, necessidades e sentimentos sem
conflitos.
Esta sou eu... à espera de quem há-de vir.
terça-feira, 5 de março de 2013
Atropelos relacionais
Há dias, um amigo meu das lides
virtuais, com apenas 18 anos acabadinhos de fazer mas com uma aparente
maturidade e dimensão raras de ver em gentes tão jovens, escreveu algo como
isto: “sabes que 9 em cada 10 pessoas estão apaixonadas por ti? E dessas 10 tu
estás apaixonada precisamente por aquela que não gosta de ti.”
Eu tenho sempre tendência para
complicar as coisas – sou mulher. Poderia ficar-me por uma conclusão de La Palisse como “é sempre assim”; “infelizmente
não controlamos de quem gostamos”; etc. Mas não. Não sou capaz. Sendo que as
relações humanas são tão complicadas não me parece que seja assim tão linear e
leviano.
Há aqui qualquer coisa que não
percebo, mas admito ter que ver com a minha parca experiência neste campo. A
população mundial tem vindo a aumentar exponencialmente. Todos os dias há mais
divórcios do que casamentos o que, pela ordem de ideias, é uma tendência que
dita, só por si, a extinção do “sagrado matrimónio”.
Cada vez há mais gente de costas
voltadas porque - parece-me - é crescente a propensão para a falta de
tolerância e cedência que todos nós, em qualquer tipo de relacionamento, temos
de ter para que essa convivência, diária ou não, funcione com todas as
vicissitudes que lhe são naturais e, muitas vezes, necessárias.
Esta resiliência e capacidade de
nos moldarmos serve, também, para darmos oportunidade a quem aparentemente nada
nos diz ou, pior do que isso, nos provoca um prurido inconsciente. “As aparências iludem” ou “quem vê caras não
vê corações” parece definir um estado quase permanente da nossa consciência
porque, quando agimos apenas e só com recurso aos nossos instintos mais
básicos, o processo é genuíno. Contamos apenas e só com os nossos instintos
para transmitirem ao nosso cérebro se o cheiro de determinada pessoa nos agrada
ou não.
Quando começamos a racionalizar –
ainda que determinados factores sejam demasiado importantes para serem
ignorados – por vezes perdemo-nos na busca de um ser cuja imagem é apenas e só
fruto da nossa perigosíssima idealização fomentada frequentemente por uma auto imagem
e auto estima subvertidas.
É por isso que – acredito - muitos de nós passam pela
vida à procura “da pessoa certa” quando se calhar ela esteve quase sempre ao
nosso lado mas os nossos pré conceitos boicotaram a possibilidade de a vermos, ouvirmos
e sentirmos. Andamos, costas com costas, à procura uns dos outros num ciclo
vicioso.
segunda-feira, 4 de março de 2013
Redenção...
"A vida é um calvário. Sobe-se ao amor pela dor, à
redenção pelo sofrimento"
Abílio de Guerra
Junqueiro
Sem dor, não há amor. Sem
sofrimento não há redenção. Se não cairmos nunca teremos oportunidade de
aprender a levantar-nos.
Percebi, finalmente, a
importância do perdão. É um processo complexo. Ambivalente. O perdão implica
aceitação, compreensão e, acima de tudo, uma instrospecção feroz do nosso
íntimo mais profundo.
Não se trata apenas de justificar
as acções da outra parte. Não se trata, sequer, de justificar coisa nenhuma e é
isso que o torna tão difícil de alcançar. A meu ver e de acordo com a minha
experiência, tem a ver com o olharmos para dentro de nós da mesma forma que
olhamos para os outros ou vice-versa.
O ser humano é o único capaz de
se fazer valer de juízos de valor ao desbarato. Sempre que o faz – acredito –
renega uma parte de si mesmo que está calcada no recôndito do seu ser. Ou
seja, é um pouco o reflexo de si próprio.
Só tem o poder de nos magoar todo
aquele a quem dermos esse poder. Dito assim parece fácil. Mas a receita é
exclusiva e única para todo e qualquer um de nós: a auto-estima.
Não posso dizer que seja uma
pessoa propriamente vivida. Mas posso congratular-me por já ter vivenciado o
suficiente para concluir os sentimentos e aprendizagens que transponho nestas
palavras.
O processo de perdão é
extraordinariamente enriquecedor porque nos permite conhecer melhor o âmago das
nossas dores e mágoas, trabalhá-las e compreender que para tudo há uma justificação,
ainda que muitas vezes para nós seja inverosímil, incompatível ou desadequada.
E é aqui que a aceitação tem um papel preponderante. Porque nos ajuda a aceitar
o outro tal como é dando-nos a possibilidade de, com novas ferramentas, saber
lidar com essas características.
Todos nós, sem excepção, ao longo
das nossas vidas, fazemos mal a alguém. Não porque o desejemos; não porque o
premeditemos. Apenas e só porque esse alguém, pelos mais diversos motivos, o
permite e, eventualmente, alimenta. As expectativas servem apenas e só para serem
goradas e contribuir para uma frustração por vezes desmesurada.
Quando perdoamos alguém esse
alguém não é, na minha opinião, o outro lado do olhar mas sim o outro lado do
espelho – o nosso próprio reflexo ou sombra. Quando conseguimos alcançar esse
estadio abrimos uma porta de tolerância e compreensão que nos elevam a um
estado de redenção: um renovar que nos lava a alma e abre em nós janelas que
nunca mais se fecham.
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
Introdução dois pontos Filantropismo vs Caridade
Um destes dias, numa das minhas muitas deslocações
ao Hospital de Egas Moniz como utente, e considerando a cada vez maior
dificuldade em estacionar o carro dentro ou fora daquelas instalações, após 45
minutos de procura, lá estacionei num local pouco aconselhável mas que serve de
parqueamento a todos os que, como eu, não têm outra alternativa.
Naquele espaço, e como impera cada vez mais, labuta
um senhor já de idade e com algumas dificuldades, mas que se apressa em ajudar
a encontrar e/ou arrumar os veículos. Uma “profissão liberal” não legalizada a
que chamamos comummente de “arrumador de carros”. Curioso é que em alguns
locais já existe efectivamente este tipo de ofício reconhecido mas
aparentemente apenas e só num contexto elitista.
Adiante… Estacionei o carro e com muita vergonha
saí e disse-lhe o que costumo em circunstâncias semelhantes: “peço imensa desculpa
mas não tenho dinheiro nenhum.” – E não tinha.
Ele ficou a olhar para mim e respondeu com uma
ironia condescendente e educada: - E que culpa tenho eu disso? – Acrescentando logo
de seguida: - Desde que me deseje saúde e paz. O resto vem por acréscimo. Não
se preocupe com isso.
Retorqui tentando fazer jus ao respeito e educação
que os meus queridos progenitores me deram: - Sim. Eu sei. E não é isso que
está em causa. Gostava de contribuir com pouco que fosse. Mas fazemos assim: eu
vou buscar o meu pai e depois dou-lhe qualquer coisa se ainda aqui estiver. –
soou mal mas era, na altura, a única coisa que conseguia dizer.
Voltou a dizer-me para não me preocupar. Nos dez
minutos que passaram contou-me que trabalhou, em tempos, no Instituto de
Medicina Tropical (no parqueamento). Um dia apanhou uma senhora que, depois de
estacionar, foi ter com ele, deu-lhe vinte cêntimos e disse-lhe, com os olhos
marejados de lágrimas: - o senhor desculpe-me mas este é o único dinheiro que
tenho aqui e em casa.
A reacção, para um ser humano que se preze, foi a
de retribuir literalmente na mesma moeda. Com as lágrimas a percorrer-lhe a
face, ele levou as mãos aos bolsos das calças, tirou dois euros e meio e
deu-lhos: - tome. Aceite para comer qualquer coisa no hospital. - A senhora
hesitou mas, a muito custo e com a determinação patente naquele gesto, aceitou.
Ponto um: o que é o filantropismo? Segundo o
dicionário é o sistema dos filantropos.
E o que é um filantropo? De acordo com a mesma fonte que ou aquele que trata de melhorar a situação dos homens. O
estatuto ou título de filantropo é, hoje em dia, atribuído a uma classe de,
salvo raras excepções, gente “nobre” que dá o que pode porque efectivamente tem
para dar. Ou seja, hoje em dia só os ricos são intitulados de filantropos. Só
os ricos contribuem para “melhorar a situação dos homens”.
Ponto dois: o que é a caridade? Aqui o dicionário
é mais pródigo em atribuição de conceitos:
1. Boa disposição do ânimo para
com todas as criaturas;
2. Qualquer manifestação dessa
disposição;
3. Pena que se sente pelos
sofrimentos alheios;
4. Esmola;
5. [Irónico] Dano, ofensa.
Estas imagens são tradicional e frequentemente
atribuídas aos que pouco ou nada têm e dão tudo. No entanto nunca pensamos
nisto. Eu pelo menos não pensava até que o meu Tico e Teco tiveram um tête-à-tête. Pensei: - caraças! Mas será
que até para se contribuir para a melhoria significativa do mundo os ricos é
que têm mais poder?
Por exemplo, eu quero comprar ração, brinquedos,
roupa, e outros bens de primeira necessidade para contribuir para diversas
causas humanitárias e animais. Não posso porque sou tesa que nem um carapau.
Quando dou o que não tenho estou a fazer caridade.
Pois bem. Inverto os papéis e daqui não arredo pé:
quem dá o pouco que tem de forma responsável, está cá para melhor servir o
mundo e para carimbar o seu contributo numa sociedade e vivências mais justas e
equitativas; quem dá um pouco do muito que tem é, salvo as devidas excepções, alguém
que, por um lado alimenta o imenso desequilíbrio entre as diversas classes
sociais e, por outro, contribui somente através da “pena que sente pelos
sofrimentos alheios” traduzida na sua egocêntrica esmola.
Posto isto, quem são, afinal, os filantropos e os
caridosos?
Quando saí do hospital dei um euro ao “trabalhador
de campo”, que ali está todos os dias para ajudar a arrumar e guardar os nossos
bens.
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
Paz ou o processo de pacificação…
Estou a passar por uma das muitas
crises existenciais que como seres humanos vivenciamos. Arrisco até dizer que
se trata de uma questão filosófica.
Afinal o que é que nós, como
seres humanos, pretendemos atingir verdadeiramente? Sucesso? Poder? Liquidez financeira?
Uma casa; um carro? Descendência? Amor? Atenção? Paz? PAZ! Este é um conceito
que é geralmente definido como um estado de calma ou tranquilidade. Uma
ausência de perturbações ou agitação. Deriva do latim Pacem que significa Absentia
Belli – ausência de violência ou
guerra.
Primeira questão: a minha eterna
ou vasta gama de conceitos. Violência
pode significar tanta coisa ou a mesma coisa mas em contextos diferentes. Há
vidas, existências, vivências violentas. Violentas de carência; de angústia; de
tristeza e afins; ou apenas violentas na mais crua acepção da palavra. O mesmo
posso dizer do conceito de guerra:
as batalhas que travamos diariamente num panorama por vezes abstracto, outras definido
pelos nossos problemas e condicionantes criadas - quiça – pela violência diversa
a que estamos sujeitos. No fundo, talvez não seja errado dizer que é sobretudo
connosco que estamos em guerra e violência permanentes.
O que eu acho é que, independentemente
de tudo o que pensamos ou sabemos procurar, há algo que, no fim da estrada,
ultrapassados inúmeros obstáculos e tatuadas na pele, no sangue e na alma
cicatrizes da experiência que é viver, cansados desejamos apenas uma coisa: a
pacificação do nosso eu perante o mundo e nós próprios.
Segunda questão: porque é que o
fazemos? Porquê? Porque é que passamos por tanto para encontrar algo que,
afinal, está dentro de nós?
Ultimamente insisto na teoria ou
constatação - (eu e os conceitos) – de que o que nos estraga como seres humanos
é a única característica que defendemos orgulhosamente distinguir-nos de todos
os outros seres: a racionalidade. Pois cá para mim, e perdoem-me a fraseologia,
mas a racionalidade é uma grandecíssima merda! É o que nos faz sofrer. Não experimentem
isto em casa mas na vossa fértil imaginação construam este quadro: atropelem um
homem e um cão e verão qual se queixará mais, qual se debaterá mais para
sobreviver apenas e só com as suas próprias capacidades; qual será o ser que se
resigna e o que aceita. A resignação tem implícito um sofrimento calado e submisso.
A aceitação é um estado de aprendizagem aliada ao mais puro e natural dos instintos:
aquele que a racionalidade nos roubou.
Terceira e última questão cuja
resposta ando à procura: porque é que precisamos de nos pacificar se nascemos
puros e genuínos? Não deveria a nossa existência basear-se apenas nos mais
altos valores, princípios e ideais que sustentam o conceito universal da
condição humana? Já alguma vez pensaram que se a Eva não se tem permitido
seduzir, ainda por cima por uma serpente, nunca teria comido a porra da maçã,
analogia curiosa para a racionalidade de todos os tempos, nós – os seus
descendentes – seríamos muitíssimo mais felizes? Estúpidos, mas felizes! Ou,
melhor dizendo, inteligentes, irracionais e felizes! Neste caso somos apenas
inteligentes mas a racionalidade provoca uma monção geral seguida de
curto-circuitos dignos de quebra-cabeças difíceis de solucionar. Perdemos tempo
a pôr as ideias no lugar porque a maldita da racionalidade nos massacra e nos
convence a termos pena de nós próprios como se nada mais existisse.
Acredito, por isso, que o
processo de pacificação passa por um desvinculo a esse sentimento amoral, que
nos rouba de nós próprios e que nos manipula a ponto de sentirmos que somos
incapazes de viver sem ele.
Concebo que as mais difíceis
vicissitudes da vida nos despertam para isso e que a paz pela qual tanto ansiamos
sem sabermos porquê, visa valorizarmos o que é verdadeiramente de primordial
importância.
Só assim sou capaz de compreender
o sofrimento a que todos estamos sujeitos em determinada(s) fase(s) da vida.
Ele prepara-nos para a única coisa inevitável: a morte ou como queiram
chamar-lhe. Acredito que alguém que durante este processo não consegue
encontrar a paz até ao “fim” é porque nunca viveu.
A minha mais recente experiência
leva-me a acreditar que a única forma de lidar com o sofrimento, a tristeza, a
angústia, a violência, a guerra, a expropriação de nós próprios, é através
desse processo de pacificação quase inatingível mas, ainda assim, possível. Não
quero com isto dizer que não nos zanguemos ou exasperemos. Apenas que, flamejadas
essas cicatrizes, aceitemos que a vida em si é um caminho árduo mas que carrega
consigo o vínculo de um ciclo constante e renovador.
Como as ondas do mar que vão e vêm e tornam a ir, a
nossa existência consubstancia uma mudança, limpeza e reciclagem permanentes
que, no fim, nos relegam para um único caminho: a Paz da nossa essência.
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
O amante das ruas...
Não posso contar. São memórias apenas
minhas. Como não tenho capacidade para escrever, encomendei este texto – e quem
o escreve não entende a minha linguagem.
Andei na rua, com todas as vantagens
e desvantagens de ser sem-abrigo. Mas não sei o que é a agressividade nem a
revolta – apenas o instinto de sobrevivência. A doçura é uma das minhas
características.
Não sou bonito. Há até quem me chame
feio. Sou estrábico e os meus olhos não são iguais. O direito tem umas
pálpebras normais; o esquerdo está definido a negro como se tivesse eyeliner.
Um dia deparei com uns portões verdes
de ferro abertos. Entrei e vi um pátio grande, zona de estacionamento, com
alguns pequenos locais com terra. Ideal para a minha exaustão. Deram por mim,
começaram a dar-me comida, água e mimo. Dormia debaixo dos carros e corria,
livre, por aquela zona de pedra.
Não tinha motivos para abandonar o
sítio onde tinha encontrado alguma segurança e conforto. Fiquei.
Desconhecia mas voavam e-mails com a
minha fotografia na esperança de me encontrarem uma família adoptiva. Confesso
que comecei a deprimir. Carência sem fim, deixei de comer. Necessitava de atenção,
carinho e calor humano.
Também não sabia, mas a minha
presença, anódina, começava a incomodar. Uns queriam-me, outros não me queriam.
Encontrava-me numa instituição pública e o director avisou, quem de mim gostava,
que não sabia que eu estava lá mas
que já havia movimentos de descontentamento e se lhe formalizassem a queixa
teria que passar a ter conhecimento e
pôr-me na rua.
Insistiram nos e-mails. No dia 23 de Outubro de 2011, num domingo chuvoso, foram
buscar-me. A minha amiga Segurança de serviço ficou a chorar de dor e eu não
sabia ao que ia.
Entrei, medroso e sujo, numa casa com
tudo preparado para me receber. Chamaram-me Luna. O meu avô dizia que eu ficaria traumatizado por ter nome de mulher…
Nas duas primeiras noites dormi
debaixo de uma cama que me fazia lembrar o refúgio dos carros. Mas a cama foi
substituída por um sommier largo e
grande. O meu instinto fez-me subir e dormir num dos cantinhos não fosse ter
que fugir rapidamente. Tinha uma mantinha linda, às cores e muito fofinha,
especialmente escolhida pela minha tia S. Mas não a queria em cima de mim – não
a minha tia!, que adoro, mas a manta!
Afinal, estava habituado ao frio, ao
calor e ao vento.
Poucos dias depois, durante os meus
passeios nocturnos pela casa, encontrei a janela da cozinha ligeiramente aberta
com os estores não completamente descidos. Esforcei-me, levantei as persianas
com a cabeça e passei para o parapeito de fora. A minha mãe, atenta que nem rato experiente de esgoto, apercebeu-se e veio
a correr. Eu, feliz, a percorrer aquele passeio. Ela, em pânico, encostada a um
armário. Quando a vi chorar, fiquei a olhar estarrecido sem perceber patavina
mas achando que o melhor era voltar depressinha para dentro. E lá fui eu. Vi-me
coberto de beijos e de abraços. Excelente recompensa.
Um episódio que se repetiu por mais
três vezes. Adoptaram outra estratégia. Aparentemente não se enervavam e
chamavam-me sem se aproximarem para não me assustar. Finais felizes, diziam.
Andava o dia todo atrás da minha avó. Pobre e querida senhora. Sentia-se
só e falava comigo constantemente de tudo e nada. Adorava ouvi-la tagarelar e cantarolar.
Inseparáveis.
Ficava aborrecido, claro está, quando
a minha mãe saía todas as manhãs.
Dizia-me que ia ganhar dinheirinhos para a minha papinha… He-e… Dois dias por
semana ficava em casa. Que raio de sentido é que isto faz? Quando voltava, no
final da tarde, era o primeiro a chegar à porta. Chamava por ela sem
compreender por que não a via. Mas homem que é homem não dá abébias. Queria
beijar-me e eu voltava-lhe o rabo. “Não, não, minha querida – pensava –, agora
hás-de penar! Ora toma lá, vai buscar…”
A minha família considerava que eu
tinha um olhar expressivo e lindo. Percebiam se não estava para amar, se tinha sono ou se queria alguma coisa.
Acima de tudo, os meus olhos são suplicantes como os de uma criança
bem-comportada. Com a minha voz de bebé, chamava a avó para me fazer companhia a comer.
A mãe
deu-me brinquedos, um iglo e um
ginásio. Coitada. Não percebia que eu não sabia brincar, que não me sentia bem
fechado e o que me agradava mesmo era afiar as unhas naquela estrutura
encarnada.
O meu local preferido era o bar
localizado numa varanda fechada, rodeada de janelas. Saltava e estava horas lá
em cima, a dormir ou a ver o movimento da rua. Sou muito branquinho, com o
nariz rosinha e o médico não queria que eu apanhasse sol, mas, convenhamos,
também não me agradava nada. Um incómodo para os meus olhos azuis tão claros…
Pedia frequentemente à avó e à mãe para me agarrarem e abrirem uma janela. Sabia que era a única
maneira de conseguir cheirar o vento e de ver o mundo.
Quase um ano depois, entrou um
gatinho cego lá em casa, o Stevie. A minha presença, meiga e ansiosa de o
acarinhar, assustava-o. Era perito em bufar
quando me sentia. Voltava-me, ia-me embora, dando-lhe espaço, tentando segunda,
terceira e tantas vezes mais que ele me aceitasse.
Um dia, aproximei-me, e, devagarinho,
estendi-lhe a mão para lhe fazer uma festa. Não reagiu mas não quis abusar. Foi
o último gesto que o avô me viu
fazer.
Depois do almoço deram pela minha
falta. Procuraram-me pela casa toda até que perceberam que uma das janelas do
bar estava um pouco aberta. Pensaram no aparentemente impossível.
A Valesca, grávida de poucas semanas,
saiu disparada de casa, e foi às traseiras. Estacou ao ver-me. O encarregado da
piscina estava ao pé de mim.
- O gato é seu? – perguntou.
- Sim… Não… É dos meus patrões…
O homem deu-me um pontapé.
- Está morto!
Sem parapeito e com um espaço tão
pequeno, o meu esforço foi tão intenso que caí no vazio.
Vim da rua e para a rua regressei.
Definitivamente.
Morri como vivi. Sem dar trabalho,
silenciosamente, anonimamente, humildemente. Até a forma como fiquei era a
forma como dormia e que tanto carinho provocava na minha família: de costas, de
patinhas inferiores abertas, as superiores meio encolhidas e, apesar de ter
mordido a língua, de expressão serena e de bebé.
Tinha dois anos.
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